crítica

O quarto de Giovanni – James Baldwin

Ambientado na França dos anos 1950, O Quarto de Giovanni (Cia das Letras, 2018) é um livro, que na opinião do próprio autor, fala sobre o medo de amar alguém. Ainda nas palavras de Baldwin, “os artistas estão aqui para perturbar a nossa paz” e é assim que o leitor se sente ao imergir nas páginas desse romance curto, porém de uma densidade e beleza literária ímpares.

Baldwin já é bastante conhecido por sua prosa envolvente e muito bela, ele escolhe bem as palavras que vai utilizar em seu texto a fim de impactar o leitor e prendê-lo ao enredo, envolvendo-o nos dramas de seus personagens. Em O quarto de Giovanni, encontramos um narrador em primeira pessoa, devastado pela culpa e em processo de autodescoberta. Para compreendê-lo sem fazer muitos julgamentos, é preciso nos atentarmos para o contexto histórico da obra e as pressões sociais que eram impostas aos indivíduos naquele momento.

Por mais que existisse uma corrente de modernidade no mundo, o final da primeira metade do século XX ainda prezava e normatizava alguns comportamentos tradicionais. Portanto, era inconcebível assumir-se gay e continuar vivendo no mesmo ambiente de antes. Ser autêntico naquele momento significava um rompimento total com a sociedade, além de uma marginalização do indivíduo, que era muito perversa e cruel. Isso significa que ele não teria as mesmas oportunidades que os demais, não conseguiria bons empregos e ficaria estigmatizado para sempre.

O sobrenome de uma família era a coisa mais importante para essa sociedade, tanto nos Estados Unidos, quanto na Europa. Neste caso, romper com a normatividade era também macular a honra de um nome, de uma descendência inteira e sofrer com as consequências desse ato. As mulheres estavam começando a se libertar de algumas amarras de alguns estigmas impostos pela sociedade, mas de forma lenta e prudente. Havia sinais de mudanças futuras, mas algumas pessoas precisariam se sacrificar para que elas viessem. Neste contexto caótico e preconceituoso, Baldwin se auto exilou em Paris por um tempo, fugindo justamente das perseguições que estava sofrendo nos Estados Unidos.

Dessa forma, ele coloca o seu protagonista de O quarto de Giovanni na capital francesa, fugindo de si mesmo. David vinha de uma situação conflituosa em relação aos seus sentimentos e à sua sexualidade, e, por não saber lidar com essas questões, ele se entrega aos vícios e à autodestruição, quase perdendo sua vida. Depois de um acidente, onde ele é colocado em xeque, resolve sair do país em busca de si mesmo. A localização geográfica do protagonista é fundamental para a construção do enredo e das discussões que Baldwin propõe ao leitor.

Em Paris, David conhece Hella, uma mulher à frente de seu tempo, que vive uma experiência a lá O sol também se levanta de Ernest Hemingway, na Espanha. Na volta de sua aventura, ela e David ficam noivos e resolvem voltar aos Estados Unidos para se casar. O que a garota não sabe, é que enquanto ela explorava as touradas, experimentava vinhos e passeava pela Espanha, seu noivo também teve as suas vivências em Paris. Não necessariamente naquele espaço romântico dos cafés parisienses, da Torre Eiffel ou da Catedral de Notre-Dame. Mas, dentro de um quarto minúsculo, sujo, localizado na periferia da cidade – o quarto de Giovanni.

David ao se encontrar sozinho na cidade, conheceu o rapaz que dá nome ao livro em um bar, onde ele trabalhava. Já no primeiro encontro, eles seguem para o quarto de Giovanni e dão vazão aos seus sentimentos mais secretos. David passa semanas vivendo com o italiano, abrindo seu coração, sendo ele mesmo, por assim dizer. Mas, em um certo momento, as coisas começam a se complicar, e David, sendo o covarde que é, foge sem dizer adeus. Por isso o seu sentimento de culpa ao longo da narrativa.

Além do contexto histórico, é importante compreender que o leitor está o tempo todo dentro da cabeça de David. Todas as perspectivas e ações dos outros personagens são filtrados pela visão do protagonista. Por isso, não podemos ter certeza de nada. Mas, Baldwin provoca em nós sentimentos muito diversos e nos atenta para temas extremamente complexos e fundamentais para a nossa sociedade. O fato de colocar todos os personagens do romance multifacetados e falíveis demais, os aproximam de nós e da realidade. Assim, é impossível não sentir empatia por todos eles.

Através da visão de David, em alguns momentos, achei o personagem Giovanni bastante exagerado, intenso demais e muito dramático. Chega a ser um tanto clichê, e por isso é fundamental lembrarmos que ele está sendo descrito sob a ótica de outra pessoa. O enredo em si, também não me trouxe grandes novidades ou surpresas. Talvez seja pelo fato de eu já ter uma bagagem cultural, literária e televisiva muito ampla sobre o tema. Então, David para mim, foi um personagem comum, cheio de dúvidas, incertezas e massacrado por uma sociedade hipócrita e injusta.

Entretanto, não posso deixar de pontuar a qualidade literária da obra, em todos os sentidos. Nada está no livro por acaso. Desde os nomes dos personagens, com significados importantes para a construção da narrativa, até o lirismo das palavras e a abordagem de temas incômodos de forma visceral e introspectiva do narrador. Baldwin utiliza diversos recursos linguísticos, principalmente a simbologia – casas grandes, bonitas e limpas em contraponto com o quarto pequeno, sujo e periférico, as grandes famílias tradicionais francesas e os estrangeiros delinquentes e fora dos padrões e o mar, o oceano que separa uma zona de conforto de uma zona de desconforto.

Dessa forma, podemos concluir que esse é um livro desconfortante, incômodo e ao mesmo tempo, belo. Acompanhar o íntimo de um homem tomado pela culpa, que perdeu completamente a noção de quem ele é e já não sabe mais separar o certo do errado, é difícil, mas necessário. Talvez, embarcando em histórias como essa, possamos evitar a morte física de tantos Giovannis e a morte espiritual e de alma de vários Davids. Impedir que muitas pessoas se transformem em espectros de si mesmas.

A necessidade de ler livros como O quarto de Giovanni e de propagar a palavra de James Baldwin, se faz urgente depois de sabermos que produtores de conteúdo literário perderam seguidores e foram hostilizados nas redes sociais por postarem fotos e resenhas desse romance. Isso nos mostra que ainda somos os mesmos e que estamos dispostos a oprimir e marginalizar pessoas como o David. Portanto, antes de julgá-lo, coloque-se no lugar dele e pense em como seria sua vida nessas condições. Além disso, O quarto de Giovanni é um grande exercício de empatia e de humanização proporcionado pela literatura.

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