crítica

O que você está enfrentando – Sigrid Nunez

Seja gentil, pois todos que você conhece estão travando uma batalha” – diz o dito popular, muitas vezes atribuído a Platão e que serve como tema central para O que você está enfrentando (Instante, 2021) da escritora estadunidense Sigrid Nunez. O enredo é simples: uma mulher na faixa dos cinquenta anos acompanha uma amiga que está com câncer em sua luta derradeira contra a doença e durante esse período, ela conhece e reencontra outras pessoas que também estão travando suas batalhas pessoais, confiando suas histórias a essa narradora que as compartilha com o leitor através de reflexões interessantes sobre envelhecimento, meio-ambiente, relacionamentos e morte.

No seu estilo único, a autora escreve como se estivesse conversando com o leitor, em um misto de romance e ensaio, onde ela destrincha alguns assuntos muito pertinentes à nossa existência e que precisam ser mais discutidos a fim de evoluirmos como humanidade. Em meio ao seu monólogo, que envolve os diálogos com os vários interlocutores que ela encontra no meio do caminho, há também as suas memórias ou conexões que ela faz entre as pessoas, filmes, séries, documentários, livros e podcasts que dialogam com o fato em si e que proporcionam reflexões interessantes. Por isso este é um livro que gera muitos insights nos leitores, sendo uma excelente opção para clubes de leitura, onde temas capciosos devem aparecer para gerar discussões em grupo.

Um dos primeiros encontros da protagonista é com o seu ex-namorado, na cidade de sua amiga doente, onde ele está ministrando uma palestra sobre meio-ambiente e fim do mundo. Este homem é um tanto catártico, além de fatalista e desesperado, deixando na plateia um clima de terror e medo. Ele também se recusa a responder as perguntas do público, deixando-os mais reticentes ainda. Há uma justificativa para o comportamento do palestrante, mas ainda assim, ele é uma figura complexa e que gera antipatia, não apenas dos personagens, como também do leitor. Apesar de tudo, ele traz reflexões importantes para pensarmos, tais como a maternidade e a paternidade conscientes e até mesmo o questionamento se seria um ato de egoísmo ter filhos em um mundo caótico, que pode acabar a qualquer momento, ou que levaria esses indivíduos a ter uma péssima qualidade de vida, enfrentando catástrofes ambientais severas.

Ao sair da palestra, a protagonista se lembra de um documentário austríaco, onde alguns observadores acompanham diversas pessoas, de classes sociais diferentes, de profissões diversas, de vários níveis escolares e de religiões dissemelhantes rezando em frente a um altar. Todas as pessoas, sem exceção, rezavam como se Deus fosse uma espécie de psicólogo, contando-lhe suas aflições, preocupações do dia a dia, ou levando-lhe situações em que precisam tomar algumas decisões e que não sabem o que fazer diante desses problemas de ordem prática ou emocional. Na verdade, o que o diretor do documentário esperava encontrar, seria um louvor a Deus, palavras de gratidão e não pedidos de soluções para problemas humanos que fogem da alçada divina. A conclusão a que eles chegam é que a nossa sociedade está tão doente que precisa de ajuda para resolver suas aflições cotidianas, algo que poderia e deveria ser solucionado sem o auxílio eterno da terapia.

As pessoas estão enlouquecendo, disse John Waters. E o que o filme deixa claro é que, se houvesse de fato um Ser Supremo que tivesse de ouvir as orações das pessoas o tempo todo, Ele ficaria maluco. (NUNEZ, 2021, pág. 40)

A segunda personagem a aparecer na história é uma colega de academia da narradora que, quando jovem, era muito bonita e atraente, gostava de conversar e estava sempre alegre. Uns vinte anos depois, ao se reencontrarem, a protagonista percebe o envelhecimento notório nessa mulher. Mudanças no corpo, alterações no peso e uma tristeza enorme no rosto antes gentil e amigável. Já li em vários textos que o nosso rosto e o nosso corpo carregam as marcas das nossas ações, boas ou más e, quando uma pessoa tem um semblante carregado, geralmente, ela enfrentou muitas batalhas ou prejudicou muitas pessoas ao longo da vida. Essa colega de academia se mostrava frustrada, triste e chega ao ponto de dizer que gostaria de ter câncer como a irmã a fim de emagrecer.

A partir desse encontro, a protagonista-narradora faz um miniensaio sobre o envelhecimento da mulher e como ela passa a ser “descartável” quando não está dentro dos padrões exigidos pela sociedade:

Em nossa cultura, a aparência é uma parte muito importante de quem você é e de como as pessoas o tratam. Especialmente se for mulher. Então, se você é bonita, se é uma garota ou mulher bonita, você se acostuma com determinado tipo de atenção. Você se acostuma com a admiração – não apenas vinda de conhecidos, mas de estranhos, de quase todos. Acostuma-se com elogios, acostuma-se com os outros querendo tê-la por perto, querendo lhe dar coisas e fazer coisas por você. Acostuma-se a inspirar amor. Se você é mesmo bonita e não é mentalmente doente, não é presunçosa demais, não é uma idiota total, acostuma-se a ser popular, fica tão acostumada com o amor e com a admiração que nem dá o devido valor a isso, nem sequer sabe o quão privilegiada é. Então, certo dia, tudo isso desaparece. Na verdade, isso se dá de maneira gradativa. Você começa a notar algo. Não vê mais cabeças virando quando passa, as pessoas que acaba de conhecer nem sempre se lembram do seu rosto mais tarde. E essa se torna sua nova vida, sua estranha nova vida: a de uma pessoa normal, não mais desejável, com um rosto comum e esquecível” (NUNEZ, 2021, pág. 44/ 45)

Esse processo de normatização da pessoa humana, que faz parte do envelhecimento, é algo que mexe muito com as mulheres principalmente. É mais difícil para umas que para outras lidar com esse momento de mudanças no corpo, perda da vitalidade, do tônus muscular, da flexibilidade de movimentos. Ultimamente, vemos um crescimento da busca por procedimentos estéticos, por remédios emagrecedores, um excesso de exercícios físicos em prol da eterna juventude e um desejo constante de imortalidade. Chega a ser doentio esse processo de negar o envelhecimento, de viver cada fase da vida como deve ser vivida e aceitar as fatalidades, sendo a principal delas, a morte.

Assim, chegamos ao tema central do romance: a doença e a morte. A cada capítulo, a cada encontro da protagonista com seus interlocutores, a amiga com câncer tem os seus momentos – alguns bons, de esperança e outros de desespero total. Ela é separada, tem uma filha que não se importa muito com a mãe, por nunca terem desenvolvido um relacionamento verdadeiro. A primeira opção da paciente foi não fazer a quimioterapia e esperar a morte chegar, viver os dias que ainda lhe restavam com dignidade e com vivacidade. Porém, as críticas sobre a sua decisão foram tão cruéis, que ela mudou de ideia e iniciou o tratamento. Conforme já sabemos, a cada sessão, ela se sentia mais doente, ficando de cama, apática, solitária, depressiva e infeliz. Sua próxima opção seria o suicídio.

A partir desse ponto, a autora faz diversas reflexões sobre o direito de um indivíduo tirar a sua própria vida, a quem compete impedir ou não. Até que ponto esta é uma questão cultural ou religiosa e até mesmo o que aconteceria com a pessoa que toma essa decisão consciente e a coloca em prática. E aquele que sabia e não impediu? Deve sofrer algum tipo de retaliação? Seria considerado crime, diante da lei dos homens e das leis divinas assistir ao suicídio de alguém? Por outro lado, qual o sentido de lutar até o último minuto quando a pessoa está desenganada pelos médicos? É imprescindível para o crescimento de um indivíduo sofrer loucamente sendo consumido pelo câncer ou pela quimioterapia até a morte natural? E aqueles que têm um coração forte, fruto de uma vida saudável, um coração que não para de bater, mesmo quando o corpo não reage mais? Não seria esse sofrimento desumano ao extremo? E finalmente: porque todos os pacientes de câncer são “obrigados” socialmente a fazer a quimioterapia como se fossem uma espécie de heróis e quando não vencem a doença, são acusados de não terem lutado o suficiente? Estamos preparados para lidar com a morte e as doenças?

É assim que ocorre com as pessoas, ela me diz agora. Não importa o que aconteça, elas querem que você continue lutando. É assim que fomos ensinados a ver o câncer: uma luta entre o paciente e a doença. Ou seja, entre o bem e o mal. Existe uma maneira certa e uma maneira errada de agir. Um jeito forte e um jeito fraco. O caminho do guerreiro e o caminho do desistente. Se você sobreviver, é um herói. Se você perder, bem, talvez não tenha lutado o suficiente. Você não acreditaria em todas as histórias que ouço sobre esta e aquela pessoa que se recusaram a aceitar a sentença de morte que receberam daqueles médicos estúpidos e desagradáveis e foram recompensadas com muitos, muitos mais anos de vida. As pessoas não querem ouvir ‘terminal’, diz. Não querem ouvir ‘incurável’ ou ‘inoperável’. Chamam isso de conversa derrotista. Falam coisas insanas como: ‘enquanto continuar vivo, há uma chance’. E ‘milagres médicos acontecem todos os dias’ – como se os tivessem acompanhando. Falam: se você apenas persistir, quem sabe não encontram a cura. Eu nunca soube que tantas pessoas inteligentes e educadas tinham a ilusão de que a cura para o câncer estava prestes a surgir” (NUNEZ, 2021, pág. 87)

A partir desse trecho e de todos os questionamentos que a autora nos deixa, é perceptível que ainda existe um enorme tabu sobre a morte, sobre a finitude da vida e principalmente sobre o câncer. Há muita desinformação e além disso, a sociedade tem medo, inclusive as pessoas mais graduadas, consideradas intelectuais, têm esse medo de adoecer e de perder a capacidade de tomar suas próprias decisões, sua autonomia e sua liberdade de expressão e de movimentos. Talvez um dia, quando a nossa sociedade deixar de relacionar temas de extrema importância e urgentes aos tabus ou a castigos divinos, compreender que precisamos falar sobre os elefantes na sala e que precisamos aceitar a morte e a doença como algo biologicamente humano e normal, as opções para a cura ou para a convivência com o câncer sejam mais amplas, mais abertas e menos mistificadas como ainda é hoje, em pleno século XXI.

Sigrid Nunez é uma escritora que não tem medo de abordar temas capciosos com argúcia, perspicácia e em um tom bastante provocativo, que leva o leitor a muitas reflexões e consequentemente a uma mudança de paradigmas, mesmo que seja para contestar as suas provocações. A autora possui vários livros publicados nos Estados Unidos e no mundo, ganhou diversos prêmios literários e foi uma das grandes descobertas por aqui do ano de 2023. Infelizmente, no Brasil, temos apenas dois títulos da autora publicados pela Editora Instante. Aguardo ansiosamente por mais livros dela por aqui, pois da Sigrid, quero ler até as listas de compras. Dessa forma, nem preciso redundar em dizer que recomendo fortemente a escritora para vocês.  

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