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O Realismo Mágico e as tendências contemporâneas na Literatura Latino-americana

Em fevereiro desse ano completei dois anos de leituras no Clube Leia Latinos, sobre o qual eu já falei aqui em algumas outras oportunidades. Por isso achei pertinente trazer um conteúdo mostrando o quão fascinante essa literatura é. Algumas pessoas a relacionam apenas ao Realismo Mágico, porém, a literatura latino-americana vai muito além disso – ela nos traz uma quebra de paradigmas no sentido de resisgnificar a história, as memórias e ampliar a nossa visão monolítica de mundo a partir do microcosmo que os autores criam em qualquer lugar e em qualquer tempo cronológico.

Ao lermos o último livro do Clube, Memórias de Mama Blanca da venezuelana Teresa de La Parra, observamos que o mês de fevereiro no CLL é caracterizado por obras curtas, mas muito potentes no sentido de nos levar a diversas reflexões e também de permanecerem com o leitor muito tempo depois de concluída a leitura. Esta é uma das características da literatura latino-americana contemporânea: textos curtos, incisivos e intensos, abordando temas universais. Por isso, vou comentar cada uma dessas obras, identificando nelas algumas características da literatura latino-americana, mencionando vez ou outra, algum aditivo lido no Clube (ou fora dele) mas que contém os elementos básicos que fazem dessa região uma fonte de inspiração literária.

As três obras lidas nos meses de fevereiro no CLL foram Pedro Páramo do mexicano Juan Rulfo, um dos maiores representantes do Realismo Mágico, Rinha de Galos da equatoriana María Fernanda Ampuero, que mostra ao leitor uma outra faceta da literatura produzida na América Latina, que é a violência através do terror e por fim, Memórias de Mama Blanca, que foi o estopim para esse texto e que nos traz as memórias de uma forma mais subjetiva, sem deixar de lado as questões externas, políticas e sociais da época retratada.

Para começar a conversar sobre literatura latino-americana, é importante compreender o que foi o Realismo Mágico e sua origem. Esta foi uma escola literária que surgiu no século XX, com o objetivo de se desvincular dos velhos modelos literários europeus, buscando uma independência para contar a sua própria história, sem se basear em uma realidade totalmente distinta da qual se vivia na América Latina. Para tanto, os autores da época utilizavam o recurso do insólito, junto à história conturbada dos países que compõem a região e a criação de lugares inexistentes, somados com os mitos, crenças e culturas locais, realizadas em um tempo qualquer. Apesar dos fatos insólitos não há um disvínculo com a realidade, o objetivo dessa literatura é autenticar um novo aspecto de vida latino-americana e não aquele antigo e sem conexão com a realidade feita pelos europeus.

A partir da década de 1960, houve uma grande difusão das obras latino-americanas no mundo inteiro, devido a três fatores principais que foram a Revolução Cubana (1953/1959) que, nas palavras de Gabriel García Márquez “se transformou em um artigo de consumo”, o mercado editorial e a qualidade das obras. A união desses fatores gerou o chamado Boom Latino-americano, que mostrava a história desses países de uma forma inovadora, acentuando suas características históricas e culturais, sem fugir da realidade verdadeira, através do Realismo Mágico, do insólito. Em 1962, houve um congresso de intelectuais no Chile que visava reunir os escritores latino-americanos para refletirem sobre suas obras. Neste congresso, o escritor panamenho Carlos Fuentes passou a ser considerado o fundador do Boom porque ele levou suas obras e de seus colegas a editores europeus, propagando a obra latino-americana no mundo. Neste mesmo ano, foi publicado o livro A cidade e os cachorros do peruano Mario Vargas Llosa, que traz as memórias subjetivas como tema central e que foi reconhecido e premiado no exterior.

Por causa do conflito em Cuba, os Estados Unidos se interessaram em conhecer o seu oponente e o fizeram através da literatura. Antes disso era muito difícil aos escritores latino-americanos publicarem seus textos. Até mesmo em seus países, eles precisavam divulgar suas obras em cafés, saraus ou fazer uma produção independente. As editoras locais preferiam publicar literatura internacional. O ápice do Boom latino-americano foi a publicação de Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez em 1967. O romance se tornou um best-seller e assim elevou o nível da literatura produzida na América Latina a patamares importantes no mercado editorial mundial.

Munidos de uma liberdade incrível para escrever seus romances, alguns escritores latino-americanos resolveram mostrar a sua realidade de forma maravilhosa e mágica, mesmo envolta em tantos dissabores de cunho político e social. Através do insólito, é possível contar histórias dos mitos e lendas locais, o sofrimento do povo e mostrar a abundância cultural presente em todos os países que compõem a América Latina. Um dos principais objetivos dessa tendência é romper com os padrões europeus do romance, que nos permite falar sobre os medos e sonhos, mas também sobre os conflitos políticos que estavam ocorrendo na América Latina provocados pelas ditaduras que traziam um atraso social e tecnológico aos povos.

O Realismo Mágico nos provoca estranhamento justamente pelo fato de não estarmos familiarizados com as lendas locais e com os acontecimentos dos países latino-americanos e por isso tudo nos parece absurdo e fantasioso. Aceitar o insólito como natural é importante para a compreensão dos textos do Realismo Mágico, pois este faz parte da sua realidade. O místico e o sobrenatural fazem parte dessa cultura e por isso dispensa explicações. Ele caminha ao redor dos costumes, do cotidiano, dos valores e da cultura. Nas palavras de Camila Villate Rodriguez:

O natural e o sobrenatural caminham no realismo mágico juntamente, de forma que o sobrenatural é naturalizado e a realidade se torna insólita ou melhor, mágica” (RODRIGUEZ, 2000).

Assim reconhecemos que tanto o espaço, quanto o homem e a nossa realidade são mágicos. Quando lemos o romance Pedro Páramo de Juan Rulfo, sentimos essa atmosfera desde o começo da narrativa. O autor escreve de forma seca, árida, como se fosse uma representação da miséria e das condições sociais e ambientais do México. Ao longo da prosa, acompanhamos o protagonista em sua busca pelo pai, em uma cidade chamada Comala, e vamos sentindo o mesmo estranhamento que ele ao passar pelas ruas vazias, indagando aqui, acolá, coletando informações caleidoscópicas, que farão sentido no final, mas que nos deixam inúmeras perguntas. Essa característica representa a ressignificação da nacionalidade, da ancestralidade e a apropriação da própria história, sempre contada por outrem, que a distorce e a vende como tal. Aqui há espaço para o leitor fazer as suas inferências e interpretações, assim como é esse mosaico que chamamos América Latina.

As principais obras do Realismo Mágico são Pedro Páramo de Juan Rulfo, A casa dos espíritos de Isabel Allende e Como água para chocolate de Laura Esquivel. Dos três, me falta ler o último livro, da Esquivel, porém, ela é uma obra bastante conhecida, pois ganhou uma adaptação para o cinema.

Cem anos de solidão – Gabriel García Márquez, Conversa no Catedral – Mario Vargas Llosa, A casa dos espíritos – Isabel Allende, Água por todos os lados – Leonardo Padura e Pedro Páramo – Juan Rulfo

Atualmente, nas tendências contemporâneas da literatura latino-americana, encontramos além do Realismo Mágico, a diáspora como um fator crucial nos textos e na vida dos escritores pós-modernos. Existe um afastamento da antes idolatrada e importantíssima identidade nacional, sendo que hoje cada um busca a sua própria identidade, baseada nas próprias memórias e descobertas do mundo. Grande parte das pessoas nascidas em países latino-americanos e que têm oportunidade e condições, por influências externas ou por vontade própria, tendem a sair de seu país de origem em busca de melhores condições de vida e de oportunidades de enriquecimento. Essa diáspora que sempre existiu, ganhou muito mais força com os avanços tecnológicos, com a globalização e principalmente com a Internet. Assim, esse é um tema bastante recorrente na literatura atual da América Latina.

Uma das abordagens sobre esse tema é o posicionamento no lugar de identidade como essência, ou seja, não há necessidade de se identificar como mexicano ou como parisiense, as raízes do indivíduo estão dentro dele mesmo, sua cultura, suas crenças, sua língua. Portanto, viver em outro país e se identificar mais com ele, é bastante comum nos dias atuais. No CLL, lemos três livros que abordam esse tema da diáspora e da volta ao país natal como forma de certificar que não se deseja voltar a viver ali, mas que ao mesmo tempo, essas raízes culturais ainda vivem dentro do indivíduo.

Em O quarto branco, da brasileira/ uruguaia Gabriela Aguerre, temos uma protagonista que busca respostas para questões pessoais que a estão incomodando e para se reencontrar, volta à sua cidade natal no Uruguai, onde ela relembra fatos da sua infância e mantém com os lugares uma relação afetiva distanciada. O romance tem um tom saudosista, assim como em Memórias de Mama Blanca. Já em País sem chapéu, do haitiano Dany Laferriere, a abordagem é outra. O autor compartilha o lugar de enunciação dos narradores personagens que vivem ou viviam fora e agora têm de suportar o retorno a um lugar que não suportam mais. Esse é um romance de cunho autoficcional, onde há um retorno ao país natal, depois de décadas morando fora. Tudo ali lhe soa estranho, insólito, diferente. O protagonista não reconhece mais as pessoas, os lugares e não entende como seus pares continuam vivendo ali. Por outro lado, há ainda os vínculos que ele mantém com o seu país de origem. Em Tornar-se Palestina da chilena Lina Meruane, a questão é outra. Ela busca suas origens em uma diáspora mais distante, a de seus avós que vieram da Palestina. Ela tenta fazer uma desconstrução da noção essencialista de identidade nacional, quebrando paradigmas, questionando escritores e pensadores ocidentais e tentando entender as suas origens e como elas ecoam dentro dela atualmente.

Stuart Hall, grande estudioso dos movimentos migratórios mundiais, diz que “A globalização cultural é desterritoralizante –  suas compressões espaço-temporais, impulsionadas pelas novas tecnologias, afrouxam os laços entre cultura e lugar”. Esse afrouxamento dos laços afetivos com a pátria provocam um distanciamento de conceitos monolíticos de identidade e consequentemente, um posicionamento híbrido dos escritores contemporâneos. Assim eles se expressam em um deslocamento como lugar de enunciação, como por exemplo Mario Vargas Llosa, que transita entre três países diferentes: França, Espanha e Peru, mas ainda assim, se expressa a partir desses eixos, contextualizando suas obras em qualquer um desse lugares ou em outros que achar conveniente. Esse é o conceito do lugar como posicionamento identitário – o lugar de onde se fala não precisa ter caráter geográfico, ele está dentro do indivíduo. Essa é outra característica muito forte e presente nos textos produzidos por escritores latino-americanos atualmente.

Esse distanciamento discursivo do país de origem permite aos autores a ambientação de suas narrativas em qualquer época histórica e em qualquer lugar do mundo, como faz Gabriel García Márquez em Cem anos de solidão, com a cidade de Macondo. O romance teve um alcance tão gigantesco, que é comum falarmos o nome dessa cidade e sermos compreendidos imediatamente: Macondo vive no imaginário popular. Esse movimento, desenvolvido por García Márquez e por Isabel Allende consiste em um esforço de desmantelar a ideia de nação como comunidade coesa e homogênea, que após um longo período de autoritarismo, manipulador e excludente, busca por uma memória e uma história inclusivas onde caibam não apenas os generais e os latifundiários, mas todos os setores da sociedade. Seria a América Latina “como um lugar simbólico de um nós não uniforme, mas sim inclusivo e respeitoso da diversidade” (ACHUGAR, 2006, pág. 156)

Uma outra vertente da literatura latino-americana contemporânea que vem ganhando força e chamando muito a atenção são as diversas formas de violência que expõem as dissonâncias da comunidade nacional, como em Rinha de Galos. A autora não tenta dourar a pílula para o leitor, ela mostra a realidade do Equador em gritos, como ela mesma disse em uma entrevista. Nos contos que compõem essa antologia, Ampuero mostra as muitas violências às quais o indivíduo está sujeito, desde o momento em que acorda até a hora em que vai dormir. E ainda assim, durante o sono, convive com a violência, principalmente aquela perpetrada dentro de casa. O livro é como o próprio título diz, uma rinha de galos, onde sempre vence o mais forte. Outras autoras se destacam também nesse sentido do insólito a partir do terror, com a intenção de denunciar as diversas violências presentes na América Latina, como Samantha Schweblin, Mariana Enriquez e Mónica Ojeda.

O último estilo de abordagem muito utilizado pelos escritores contemporâneos da América Latina que quero mencionar aqui são as memórias subjetivas. Até pouco tempo atrás, estávamos acostumados a conhecer a memória histórica, que segundo Abril Trigo é “produzida por aparatos ideológicos do estado, guiada primordialmente por objetivos nacionalistas, e que elimina tudo o que é diferente, transgride a norma ou se desvia da eterna repetição do mesmo” (TRIGO, 2003, pág. 14). Quebrando fortemente esse paradigma, temos os autores contemporâneos que trazem uma memória nacional como uma construção permanente, através de um constante embate de memórias pessoais e subjetivas, rechaçando a história hegemônica e monolítica presente nos veículos de comunicação de massa. Em Memórias de Mama Blanca, conhecemos a Venezuela, tão mal falada ultimamente pelas más línguas, como um lugar bucólico, cheio de beleza, com suas frutas típicas, os povos originários em contraste com os descendentes dos colonizadores, a vida pacata na fazenda, as brincadeiras de criança, a religião e os costumes impostos convivendo com uma natureza selvagem que deveria prevalecer ali. São as memórias íntimas de uma escritora, que colocou no papel algo que nos ajuda a construir a história de seu país, sob a sua ótica.

Da mesma forma que a História se faz através dos diários de pessoas que sobreviveram aos campos de concentração na Alemanha, das autobiografias desses sobreviventes ou da chamada literatura de testemunho daqueles que saíram dos Gulags soviéticos, temos os romances que ajudam a compor esse mosaico que é a vida. Essa é a importância das memórias para quebrar a hegemonia da história única, contada por uma só classe, baseada em preconceitos e em regras sociais de conduta, que excluem muitas vozes, as vozes que compõem esse quadro de acontecimentos e que entoam as canções que vão embalar as nossas descobertas, a nossa identidade cultural e plural. A América Latina é linda, é gigante e é encantadora. Quanto mais a conhecemos, mais vontade temos de adentrar em suas misérias cercadas de maravilhas, em qualquer tempo e lugar, sem que eles tenham a obrigação de existir geograficamente e cronologicamente falando.

Fontes:

  • Nação e memória na literatura latino-americana contemporânea – Diogo Hollanda Cavalcanti (UFRJ)
  • A história latino-americana pelos olhos do Realismo Mágico na obra “A incrível e triste história de Cândida Erêndira e sua avó desalmada” – Crislane da Conceição Alves Assunção e Josinaldo Oliveira dos Santos (X Congresso Internacional de Línguas e Literatura)

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