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O retrato de Dorian Gray e os ecos da vaidade

Não é segredo para ninguém, em pleno século XXI, que Oscar Wilde sofreu diversas retaliações por escrever aquela que é considerada sua obra-prima, O retrato de Dorian Gray (Biblioteca Azul, 2000). Infelizmente, na era Vitoriana, o amor entre pessoas do mesmo sexo era considerado atentado ao pudor, ofensa grave aos bons costumes e uma indecência. Após toda essa repercussão negativa da crítica especializada da época, Wilde escreveu um prefácio manifesto que foi impresso na primeira edição em forma de livro de O retrato de Dorian Gray e que eu gostaria de compartilhar alguns trechos com vocês:

“(…) aqueles que encontram significados feios em coisas belas são corruptos e não possuem nenhum encanto. Isso é um defeito.

Aqueles que encontram significados belos em coisas belas são os cultos. Para esses há esperança.

Os eleitos são aqueles para quem as coisas belas significam apenas Beleza.

Não existe um livro moral ou imoral. Os livros são bem escritos ou mal escritos. Isso é tudo.

(…)

Nenhum artista deseja provar nada. Até as coisas verdadeiras podem ser provadas.

(…)

O pensamento e a linguagem são para o artista instrumentos de uma arte. O vício e a virtude são para o artista matéria-prima para uma arte.

(…)

É o espectador, e não a vida, que a arte de fato espelha.

A diversidade de opiniões sobre uma obra de arte mostra que ela é nova, complexa, vital.

(…)

Podemos perdoar o homem por fazer alguma coisa útil desde que ele não a admire. A única desculpa para fazer algo inútil é admirá-la intensamente.

Toda arte é bem inútil” (WILDE, 2000, pág. 394/395)

Partindo desse prefácio, já temos um indício sobre o tema central de O retrato de Dorian Gray (não é a homoafetividade) mas sim o esteticismo – devoção à beleza, ou ênfase nela ou na arte. Pode-se considerar como tema para o senso comum a vaidade exacerbada. O livro traz como enredo principal um jovem na casa dos vinte anos, aristocrata e bon-vivant, que conhece um pintor renomado que se apaixona por ele ao fazer um retrato seu. Dorian, esse jovem aristocrata não tinha conhecimento de sua beleza e de sua juventude e, a partir do momento em que essas características são valorizadas e exaltadas por Basil, o pintor, a vaidade lhe sobe à cabeça, transformando-o de um jovem arrogante a um homem mau, sem caráter, destruidor de lares e de pessoas.

De acordo com o dicionário Oxford, vaidade significa:

1- qualidade do que é vão, vazio, firmado sobre aparência ilusória. 2- valorização que se atribui à própria aparência, ou quaisquer outras qualidades físicas ou intelectuais, fundamentada no desejo de que tais qualidades sejam reconhecidas ou admiradas pelos outros

A partir dessa definição, peguemos apenas a palavra vazio e vamos desenvolver Dorian Gray e a sua eterna ausência de significado: a vida do jovem Dorian sempre foi vazia de sentido. O rapaz vivia de uma festa a outra, frequentava as Óperas, almoçava todos os dias no clube, visitava pessoas e não fazia nada de produtivo ou que desse algum significado à sua vida. Ao descobrir que sua beleza era tudo o que tinha, ele acredita que para ser feliz ou para continuar vivendo, precisaria ser belo para sempre e assim, abre mão de sua alma para ser jovem e bonito eternamente.

Como já foi dito aqui algumas vezes, a questão do pacto fáustico carrega consigo um significado metafórico muito grande no sentido de pagarmos um preço alto em troca de algo que nos é caro, importante ou precioso naquele momento do pacto. Geralmente, após um tempo, aquelas querências tão importantes, deixam de fazer sentido e neste ponto, o acordo já foi feito e não há como voltar atrás. Em se tratando do nosso caráter, da nossa essência, da nossa alma e da nossa liberdade, esse preço vai ficando mais alto a cada dia que passa, pois, viver em desespero, em agonia e em crime não é viver e sim apenas existir. Além disso, um primeiro erro fatal puxa outros erros e cada vez mais somos enredados em situações acachapantes das quais não existe a possiblidade de sair… a não ser confessando nossos crimes.

Quando coloco esse pacto no coletivo, na terceira pessoa do indicativo, estou realmente dizendo que todos nós temos os nossos pactos e que algumas pessoas da atualidade ou situações que estão em alta no momento (de crimes passados) são grandes exemplos de “complexos de Dorian Gray” para conversarmos e pensarmos sobre a vaidade exacerbada que ainda tem muitos adeptos e que nos leva à ruína. Começando pelo documentário da HBO, lançado no último dia 21, Pacto Brutal, que conta a história do assassinato da atriz Daniella Perez. O seu assassino tem muitas características em comum com o Dorian Gray: é vaidoso ao extremo, se acha melhor que as outras pessoas, não consegue cativar amigos ou colegas, quando acuado ou percebendo a perda de espaço resolve ameaçar as pessoas à sua volta e quando vê que não há saída para o seu fracasso, mata de forma torpe e premeditada uma pessoa inocente. Além disso, após o crime consumado, se faz de amigo, procura notícias da vítima e ao ser preso, diz que arruinou a sua própria vida. Ou seja, um grande ególatra, psicótico que não consegue enxergar valor nas outras pessoas, apenas em si mesmo.

Na página 309, Wilde mostra essas características do protagonista, quando o narrador faz uma análise de Dorian, pensando nas vidas que ele ceifou:

Allan Campbell se suicidara certa noite com um tiro em seu laboratório, porém não havia revelado o segredo que havia sido forçado a conhecer (…) Na verdade, também não era a morte de Basil Hallward que pesava mais em sua consciência. O que o preocupava era a morte em vida de sua própria alma” (WILDE, 2000, pág. 309)

Como podemos constatar, Dorian não sente pelos outros, apenas por si mesmo. Este é também o caso de Margarida Bonetti, outra criminosa brasileira que esteve em alta nas últimas semanas, graças ao sucesso do Podcast A mulher da casa abandonada, magistralmente produzido pelo jornalista Chico Felitti. Para quem não sabe do que estou falando, Margarida manteve uma mulher em situação análoga à escravidão por vinte anos nos Estados Unidos, quando morou lá com o ex-marido René Bonetti. Ela nunca foi punida por seus crimes por ter fugido do FBI e vindo para o Brasil, sendo protegida pelas autoridades brasileiras por ser de uma família tradicional e rica. Ao ser confrontada com os fatos apurados por Felitti, ela tentou de todas as formas se colocar na posição de vítima e levar a tragédia para o seu lado, alegando ter sido enredada por uma máfia comandada pela ex-vizinha e pelo FBI.

Pessoas como Pádua (caso Daniella Perez) e Bonetti são exemplos reais de pessoas ególatras, vaidosas, sem escrúpulos e que não prezam pela vida humana. Em muitos trechos do romance de Wilde, me lembrei desses casos horrendos que estão em alta no Brasil, mesmo depois de caducados para a justiça, porque algum jornalista resolveu contar estas histórias de forma digna e sem as fake News que circularam na época. O retrato de Dorian Gray conversa diretamente com esses casos porque eles falam da mesma coisa: crimes e pactos feitos por vaidade, por pessoas vazias e que se apegam à valorização da própria aparência como única qualidade de vida. Esse é um tema muito atual porque com o apelo das redes sociais, nos tornamos cada vez mais susceptíveis a viver essa vaidade louca, a nos expor e a buscar por coisas ou situações que podem fugir do nosso controle e nos levar à bancarrota.

A vaidade é desenvolvida no ser humano desde a infância. Muitas pessoas que não possuem talentos artísticos ou desportivos, se apegam de forma contundente à beleza externa e à sua aparência como única moeda de troca para qualquer coisa que quiser da vida. É comum essas pessoas que se sobressaem pela aparência serem as mais populares da escola ou as mais paqueradas durante a adolescência. Na vida adulta, também conseguem muitas vantagens por causa de sua boa aparência. O problema disso tudo é quando a beleza física passa a ser o único valor de um indivíduo. Ele passa a figurar aquele conceito do dicionário Oxford de vazio, de vão e de uma ilusão. Por mais que as pessoas com essas características digam não se importar com esses estereótipos, elas se importam sim e esse vazio cresce de forma vertiginosa, fazendo com que esse indivíduo se perca e acabe fazendo coisas que não gostaria de fazer.

Quando essas qualidades exteriores são incentivadas por terceiros, o problema fica mais sério ainda. É o caso de Dorian Gray: Basil, por se apaixonar por ele, eleva-o a um nível que o faz ver em si apenas essa qualidade e mais nenhuma. É comum que a atração física seja a primeira coisa que chama a atenção em uma pessoa, mas outros predicados interiores precisam existir para que o amor perdure e para que essa beleza exterior se mantenha. É comum ouvirmos falar que alguns indivíduos são tão feios por dentro, que passam a ser feios por fora também. E, para isso temos exemplos muito divertidos no cinema como o filme O amor é cego, que mostra as pessoas em seu interior refletindo no exterior. Apesar de se tratar de uma comédia romântica, o que o diretor discute ali é muito sério e mostra exatamente o que O retrato de Dorian Gray vai apresentar: a alma de seu dono.

Dorian Gray se enxergava tão superior aos outros, que ao se apaixonar por uma atriz iniciante do teatro, desejava mostrar aos amigos a sua apresentação teatral e a sua capacidade de atuação. Quando ela não corresponde às suas expectativas, ele a abandona, a humilha de todas as formas pelo simples fato de que ele se apaixonou por uma imagem e não por uma pessoa real, que tem sentimentos. Após toda essa desdita, a moça se mata e a única preocupação de Dorian Gray é se ele será acusado de alguma coisa. Mais uma vez, me lembro aqui de Pádua e suas histórias mirabolantes para justificar o injustificável. Próximo ao fim de sua vida, Dorian Gray resolve pensar em suas ações do passado. E aí, vem uma das maiores questões feitas por Tolstói em sua crise existencial: praticamos o bem por vaidade ou por amor ao próximo? Na página 310, Wilde faz essa mesma pergunta:

Sua única boa ação tinha sido fruto meramente da vaidade? Ou a busca de uma nova sensação, como sugerido por Lorde Henry com o seu sorriso de mofa? Ou a ânsia de desempenhar um papel, que às vezes nos leva a fazer coisas mais virtuosas do que normalmente faríamos? Ou, talvez, uma combinação de tudo isso? ” (WILDE, 2000, pág. 310)

Margarida Bonetti, após sair impune de seu crime, se escondeu em sua casa centenária no bairro Higienópolis em São Paulo, deixando-a em situação de abandono. Vive sozinha, não tem amigos, fica isolada e as pessoas não gostam dela por motivos óbvios. Pádua, após cumprir uma pena indecente por seu crime – mas tudo bem, vamos relevar a nossa eterna injustiça, travestida de justiça e respeitar a sentença que foi determinada a ele – se tornou um pastor evangélico, casou-se (quem faz isso? Casa-se com um feminicida?) e vive em Belo Horizonte. Não sei como as pessoas o enxergam atualmente, pois o crime aconteceu em 1992, então, muitos nem sabem que ele fez o que fez. Entretanto, sua paz deve ser quebrada agora com a exibição do documentário e a volta do assunto à tona. Mas, o que quero mostrar aqui é que essas pessoas buscaram um exílio, uma outra vida diferente da anterior com o intuito de fugir de seus crimes e de suas consequências como seres humanos.

E claro, Dorian Gray também faz isso. Ele se muda para uma vila, onde ninguém o conhece e ele pode criar histórias para si mesmo e ser aquele que poderia ter sido um dia. Entretanto, o peso da consciência não o deixa em paz. Creio que quem comete atrocidades e é responsável mesmo que por negligência, omissão ou até mesmo incentivo à morte de outras pessoas, nunca vai ter paz de espírito. Pode-se fugir para onde for, que essa culpa, esse mal-estar vai com você, como se fosse o seu demônio para te lembrar que você pecou, que você errou, que você matou. Mais uma vez, o cinema também tratou sobre esse assunto no filme A vila, que assisti recentemente. Neste enredo, temos um grupo de pessoas que vivem em uma vila, parecendo estar no século XVIII, de modo feudal, sem recursos e cercados por “entidades”, não podendo assim sair da vila. O que eles escondem? Suas vidas passadas, seus problemas que não conseguiram resolver, mortes, frustrações, tristezas, perdas…. Tudo isso discute essa necessidade do ser humano em buscar um idílio, fugir de seus dramas pessoais indo para outro lugar e tentando uma nova vida. Wilde discute esse tema na página 299:

qualquer um pode ser bom no campo. Lá não há tentações. Essa é a razão pela qual as pessoas que moram fora das cidades são tão incivilizadas. Como você sabe, só existem duas maneiras de se tornar civilizado: uma é sendo culto, a outra é sendo devasso. As pessoas do campo não têm oportunidade de ser uma coisa nem outra e, por isso, ficam estagnadas” (WILDE, 2000, pág. 299)

Este é exatamente o conceito do filme A vila: sem tentações, não há pecado, nem crime. O retrato de Dorian Gray, escrito em 1890 traz temas extremamente atuais para refletirmos e para nos enxergamos nesse homem que não conseguia ver em si mesmo qualidades além das superficiais, da beleza e do vazio. Foi incentivado sem querer, por uma pessoa que o amou verdadeiramente e que foi desprezado pelo jovem. O pacto fáustico não lhe trouxe nada de bom em sua vida, apenas lhe esfregou na cara, através do envelhecimento do retrato o interior de sua alma, que se deteriorava a cada dia. Mostrou-lhe também todo o sangue que tinha nas mãos, mesmo aquele que acreditava não ter derramado. Ou seja, não é possível fugir de nós mesmos. Para qualquer lugar que formos, o que temos dentro de nós irá conosco e nos cobrará eternamente por nossos crimes. O melhor mesmo é não os cometer….

2 thoughts on “O retrato de Dorian Gray e os ecos da vaidade”

  1. Angelina! Que resenha sensacional! Estou babando aqui. É uma das minhas histórias preferidas da vida, deu vontade de reler. De novo. 🙂

    1. Oi Tatiane! Que bom você ter gostado desse texto. O retrato de Dorian Gray é um livraço mesmo e, abre portas para muitas reflexões, interpretações, etc. Com certeza é uma obra para muitas releituras e em cada uma delas, novas camadas vão surgindo. Também gosto muito desse enredo e do final da história.

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