crítica

O senhor presidente – Miguel Ángel Astúrias

Uma das minhas grandes surpresas literárias de 2023 foi o Miguel Ángel Astúrias, que eu já conhecia de nome por causa do financiamento coletivo de um livro seu, Homens de Milho no ano passado. Porém, nunca o tinha lido e também não estava nas minhas metas para o ano. Acontece que a literatura é tão maravilhosa, que ela nos proporciona encontros fortuitos e além disso, a cada livro que lemos, ele acaba “chamando” outros que se relacionam a ele de alguma forma. Portanto, cheguei a esse livro através da Comunidade Cem Anos de Literatura, organizada pela Denise Mercedes, que promove leituras coletivas mensais, com uma curadoria maravilhosa. Li a sinopse e resolvi participar da leitura, que se transformou em uma das melhores do ano.

O título do romance já nos diz algo sobre ele: trata-se de um contexto latino-americano de ditadura, mais precisamente na Guatemala, onde um regime autoritário está no poder, destruindo a vida de todos à sua volta. De uma forma diferente do que fez Mário Vargas Llosa em seu precioso A festa do Bode, Astúrias faz algo primoroso nesse livro – ele mostra a realidade da população guatemalteca baseado nas atitudes do Senhor Presidente, que é um personagem secundário no livro, ao mesmo tempo em que é o grande responsável por todas as desgraças que se sucedem ao longo da narrativa.

O livro começa com um grupo de mendigos em um local muito bem descrito chamado Portal do Senhor. Pelas descrições, vemos o lugar como uma praça de uma cidade do interior ou no centro de uma grande metrópole, onde se concentram residências, comércios e claro, a Igreja. Essas pessoas estão discutindo no Portal do Senhor até que um deles comete um assassinato, matando uma figura importante do Governo. Assim começam os problemas porque no dia seguinte, por ordens do Sr. Presidente, um homem é acusado desse homicídio por conveniência do ditador. Para resolver essa questão, ele nomeia aquele que podemos colocar como o protagonista do romance, Miguel Cara de Anjo, o favorito do Senhor Presidente.

A princípio, Cara de Anjo cumpre a ordem do chefe, mas ao conhecer a filha do acusado, Camila, ele inicia um processo de reflexão sobre seus atos, fazendo uma porção de questionamentos sobre certo e errado, sobre ética e se seria decente corromper aquela jovem tão sensível e tão ingênua. Assim, Cara de Anjo subverte os planos do chefe, organizando uma emboscada para que o pai de Camila pudesse fugir. O plano dá certo por um lado, porém, dá muito errado por outras perspectivas, afinal, claro que “o favorito” do Senhor Presidente tem desafetos e principalmente inimigos que sentem por ele inveja e um enorme desejo de vê-lo se dar mal. Essas pessoas se aproveitam para complicar bastante a situação, inclusive, a polícia permite saques na casa de Camila, destruindo tudo o que estava na frente. O plano também deixou testemunhas e tudo isso vai contribuir para os eventos finais do romance.

As ações da narrativa ocorrem no período de uma semana e muitas coisas acontecem nesse intervalo curto de tempo. Já o final da história se dá alguns meses depois desses eventos. Os efeitos em cadeia da falsa acusação sobre o General Canales, são a base do romance porque o autor aproveita todos os personagens envolvidos de alguma forma, para dar voz a todo tipo de pessoa possível, principalmente às mulheres, que vivem uma espécie de espera eterna, enquanto lutam por justiça, por seus filhos, maridos e cuidam de tudo, quando os homens estão envolvidos direta ou indiretamente com o caos da ditadura. Astúrias colocou duas mulheres muito representativas nessa trama que são fantásticas e que nos levam a compreender o que é a dor de uma pessoa quando perde alguém importante e principalmente quando não são ouvidas, quando não têm a oportunidade de se defender.

A primeira delas é a própria Camila, que tinha uma vida normal, feliz, fazia planos para o futuro. Tinha também um relacionamento excelente com sua família, era órfã de mãe, mas mantinha com o pai uma relação bonita e muito afetiva.  Eles tinham uma situação econômica confortável e o General Canales era um homem de reputação ilibada na cidade. Nunca passou por sua cabeça que de repente, tudo se transformaria em pó. Com o mandado de prisão e a fuga de seu pai, Camila procurou os tios, que sempre foram muito gentis com ela, dos quais frequentava a casa todos os finais de semana. Porém, ao bater na porta deles, eles não a deixaram entrar e afirmaram categoricamente a todos os enviados pelo Senhor Presidente que não tinham boas relações com o irmão, que não o viam há bastante tempo, virando as costas para Camila e o pai em apuros.

O que é mais impressionante nesse caso é a forma como Astúrias nos conta essa busca desesperada de Camila por ajuda:

De repente, sem saber por quê, sentiu que era verdade o que Cara de Anjo dissera sobre seu tio Juan, e com aflição e alarma, passou a bater a aldrava sem parar. Pom-pom-pom! Pom-pom-pom! Não era possível! Pom-pom-pom-pom-pom-pompompompom-pom-pompompompompompom…

A resposta era sempre a mesma, o interminável latir do cachorro. Ela ignorava o que poderia ter feito de tão grave assim, a ponto de eles não lhe abrirem mais a porta de sua casa. Sua esperança renascia a cada toque da aldrava” (ASTÚRIAS, 2016, pág. 168/169)

O silêncio de seus familiares e principalmente a enorme desilusão que sofreu, quase a levaram à morte e todos esses acontecimentos dos quais Cara de Anjo participou de alguma forma, o levaram a rever os seus conceitos e a enxergar com mais clareza o que acontece quando uma pessoa inocente se torna inimiga do governo totalitário e passa a ser perseguida por ele. Nestes casos, ninguém quer ser próximo, amigo ou parente dessa pessoa. De homem respeitado, general honrado e digno, a pessoa de Canales passou a ser nada, o significado de seu nome se transformou em traidor, assassino e alguém perigoso, inimigo do Senhor Presidente. O episódio mostra como a vida das pessoas pode ser destruída em questão de instantes e por motivos torpes, vis e de interesse político, que não favorecem ao povo, mas apenas àqueles que estão no poder.

A outra mulher muito representativa neste romance é Fedina, esposa do General Rodas, um homem ambicioso que desejava ocupar o lugar de Cara de Anjo. No dia da fuga de Canales, ele é preso junto com outras pessoas que estavam por ali – em países sob regimes totalitários, estar no lugar errado e na hora errada são o bastante para uma pessoa inocente ser presa, envolvida nas sujeiras do Governo. Fedina, ao procurar o marido, viu a casa de Camila e do General Canales saqueada. Sem saber de nada que estava acontecendo, ela entrou no local e foi presa também. Porém, ao sair, pegou uma carta que estava no chão, a fim de guardá-la para Camila, que era sua amiga. Ao chegar na delegacia, tentou de todas as formas possíveis contar o que aconteceu, mas a carta, junto a seu peito serviu como pretexto para uma acusação de traição e de envolvimento na fuga de Canales.

A história de Fedina foi uma das coisas mais tristes que já li na minha vida (e veja que sou uma leitora de desgraceiras!). As maldades cometidas pelos policiais com ela são inenarráveis, mas Astúrias consegue narrar e fazer com que o leitor visualize todas as brutalidades que ela sofreu, principalmente as agressões psicológicas que acontecem ao longo das sessões de tortura. Depois de perceberem que ela não ia confessar nada, venderam-na para uma casa de prostituição. Um tempo depois, o marido de Fedina foi solto e retirou a esposa do prostíbulo. Porém, ela nunca mais foi a mesma pessoa e é a partir desses acontecimentos que o autor aborda outro de seus temas principais: a loucura.

No início do romance, quando há o assassinato no Portal do Senhor, já existe essa atmosfera de loucura, trabalhada através dos moradores de rua. É um mistério os motivos que os levaram a viver naquela praça, mas o leitor consegue inferir esses significados a partir do tipo de vida que as pessoas eram obrigadas a viver nesse lugar. A privação de liberdade, as falsas acusações, os enredos criados para condenar e punir pessoas aleatórias a partir do nada, a escassez de comida, de dinheiro e principalmente de paz, é algo que impede muitas pessoas de manter a sanidade. Dessa forma, algumas delas terminam nas ruas, despojadas de tudo o que tiveram e foram um dia.

O brilhantismo dessa história e do romance como um todo é a narrativa de Astúrias. Uma das meninas que estava participando da leitura coletiva falou algo que me deixou reflexiva sobre o narrador. Ela disse que alguns livros parecem narrados por demônios e que esse era um deles. A ambientação de O Senhor Presidente traz a asfixia das ruas, o ar insalubre de sujeira, a miséria das pessoas, o sofrimento atroz que consome os indivíduos. Ele tem uma teatralidade para colocar os personagens em cena, inseri-los nesse lugar tão atordoante, opressor e fétido, que é sentido pelo leitor. Ao mesmo tempo, ele coloca elementos que são opostos a toda essa ambientação de histórias de terror, tais como a luz, a iluminação dos postes, ou a comparação das ruas largas com os mares.

Logo no início do romance, temos os elementos que ele vai utilizar para compor a sua história, tais como a igreja como um instrumento de poder, a busca de uma identidade nacional, perdida para a ditadura, um contexto aterrorizante de miséria e alienação, a falta de consciência de classe, o desespero da desesperança e os males do mundo, através de uma linguagem totalmente conotativa que fala muito através das metáforas e das entrelinhas. Através da ambiguidade, ora falando de um extremo da miséria, ora demonstrando como a vida pode ser boa quando se está do “lado certo”, Astúrias representa as figuras que lutam o tempo todo pelo poder, abrindo mão de sua humanidade. Entretanto, ao mesmo tempo, ele dá vida aos sentidos e aos lugares colocados na narrativa.

Há uma voz coletiva que predomina no texto, representando a todas as vítimas das ditaduras: os estudantes, os padres que muitas vezes, lutaram contra as torturas e esconderam vítimas em suas casas e na própria igreja. O autor também nos mostra que os crimes podem ser ridículos, tais como um padre retirar por engano o anúncio do aniversário da mãe do Senhor Presidente do mural da igreja e ser preso por atentar contra a mãe do Senhor Presidente. Astúrias utiliza a linguagem para mostrar como o jogo de palavras em um interrogatório pode confundir o interrogado, levando-o a dizer aquilo que não quer ou colocando-o em total descrédito. Além disso, quando o testemunho da verdade não tem forças para se defender, ele é anulado, sendo feita sempre a vontade do Senhor Presidente.

O texto nos mostra a sociedade através de seu enredo. São descritas as duas realidades do lugar: os trabalhadores e sua vida sofrida em contraponto com os amigos do Senhor Presidente, que têm uma vida plena de êxitos e fartura. O lixo passa a ser a cama daqueles que foram despojados de tudo, provando as desigualdades sociais, fruto da distinção política. As escolhas dos nomes dos personagens são uma ironia a toda a situação vivida na América Latina no período das ditaduras, onde nada é o que parece. O realismo mágico aparece também no romance, até porque, para um texto tão denso quanto esse, que narra algo tão terrível, é preciso recorrer a esses elementos para dar ao leitor a esperança de que as coisas podem mudar.

A história de O Senhor Presidente foi inspirada no ditador Estrada Cabrera, que foi Presidente da Guatemala no período de 1898 a 1920. O autor não menciona o seu nome, assim como também não situa sua história no tempo ou no espaço, algo que é uma marca da Literatura Latino-americana. A família do escritor foi perseguida por Cabrera e por isso se exilaram em uma propriedade rural, tendo a oportunidade de conviver mais de perto com os povos originários da região, conhecidos por nós como Maias. Essa aproximação com os indígenas contribuiu muito para a obra do autor e a confecção deste livro em especial. Ao longo da prosa, observa-se muitas referências à civilização Maia. O primeiro capítulo de O Senhor Presidente, No Portal do Senhor, foi anteriormente um conto, chamado originalmente de Os mendigos do Presidente. O livro começou a ser escrito em 1923 e foi finalizado dez anos depois. A publicação aconteceu em 1946, na Argentina e demorou um tempo para chegar à Guatemala.

O Senhor Presidente faz parte de um gênero do romance, conhecido por Romance de Ditador, bastante popular durante o Boom Latino-americano, que conta com escritores renomados, tais como Alejo Carpentier, Gabriel García Márquez e o famoso Eu, o supremo de Augusto Roa Bastos. Eles têm como base um ditador histórico, porém o seu foco é no cotidiano das pessoas que vivem as consequências dessa ditadura. A partir de 1970 houve uma mudança neste gênero, que passou a abordagem do ditador a ser baseada em vários deles e não apenas em uma figura única, utilizando-se do realismo mágico para tanto. O Senhor Presidente foi um dos percursores do gênero e Miguel Ángel Astúrias foi contemplado com o Prêmio Nobel de Literatura no ano de 1967.  Deixo aqui a forte recomendação desse romance para vocês e também o meu desejo por ler mais obras do autor.

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