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O universo Joan Didion em dois livros autobiográficos: “O ano do pensamento mágico” e “Blue Nights”

Joan Didion é uma das maiores vozes norte-americanas da contemporaneidade e ficou bastante conhecida por seus ensaios cirúrgicos e provocativos, controversos, porém sinceros e por sua autenticidade tanto no sentido literário, quanto em sua vida pessoal. Nascida em Sacramento no ano de 1931, passou a infância acompanhando o pai em suas diversas mudanças pelo país, devido à Primeira Guerra Mundial e por isso acredita sentir-se como “alguém de fora”, que conheceu muitos lugares, sem criar raízes em nenhum deles.

Ao terminar a faculdade, Didion venceu um concurso oferecido pela Revista Vogue, cujo prêmio consistia em uma viagem à Paris. Esperta como só ela, Joan pediu para que a premiação fosse convertida em um emprego na sede da revista em Nova York. E conseguiu. Mudou-se para a cidade munida de um desejo enorme de vencer e enfrentar a selva de pedras. Mas, a empolgação com a cidade durou pouco tempo. Após conhecer e casar com o também escritor John Dunne, mudaram-se para a Califórnia, com a cara e a coragem, atrás de novos desafios profissionais, mas também, principalmente, com o objetivo de “viver de verdade”.

Neste ponto encontra-se um dos trechos mais belos e reflexivos de O ano do pensamento mágico (Harper Collins, 2005), quando a autora está se lembrando de sua vida ao lado do marido e cita a mudança de Nova York, justificando-a como uma oportunidade de viver a vida, ter momentos intensos de felicidade e todas aquelas ilusões que carregamos ao longo da vida, principalmente quando somos jovens. O que acontece a seguir é que ela, ao perder o marido, percebe que os momentos mais significativos que compartilharam foram os mais triviais possíveis: jantares em família, desenhos, poesias, músicas e leituras. O que me faz pensar imediatamente em Proust e sua eterna busca do tempo perdido.

Didion desenvolve muito essa questão da busca intensa pela felicidade e dos momentos triviais que perdemos ao longo do tempo, envolvidos em nosso mundo particular ou mesmo em nosso auto centrismo. Por um longo período acreditamos que a felicidade está em grandes acontecimentos, festas, realizações, produtividade. Quando na verdade, ela está nas relações que construímos todos os dias com as pessoas que conseguem saber o que estamos pensando apenas pelo nosso olhar ou sabem como gostamos do nosso café, os nossos livros favoritos, trechos de músicas que nos encantam e até mesmo as escolhas que vamos fazer. Esse tipo de intimidade geralmente é construída por casais e, quando uma das partes se vai, a outra fica com uma sensação de vazio total e começa realmente a pensar se viveu tudo o que tinha para compartilhar com aquela pessoa.

O ano do pensamento mágico é um livro que conta a história do luto da autora após a perda do marido. Além do fato dele ter falecido por causa de um enfarte fatal, a única filha do casal, Quintana, estava internada na UTI desde a véspera do Natal. John Dunne faleceu no dia 30 de dezembro de 2003. Os sentimentos que Didion compartilha nesta obra, além de viscerais e muito íntimos, são universais e provocam no leitor uma identificação imediata com as reações que ela apresenta ao longo da prosa. Coisas que pensamos que só nós sentimos ou vivemos, estão ali, escritas e sofridas pela escritora.

Outro trecho muito marcante desse livro para mim, foi quando ela contou que estava tentando doar as roupas e pertences de seu marido, após algumas semanas e quando foi pegar os sapatos, ela disse “não, ele pode precisar deles quando voltar”. Isso parece exagerado e surreal. Até mesmo irracional, mas quem já vivenciou a perda de um ente querido, entende e se identifica com o relato de Didion. Me lembro de quando minha mãe estava doando as coisas do meu pai, após a sua morte e que eu tentava resgatá-las e guarda-las novamente, na esperança de que ele retornasse do mundo dos mortos e precisasse daqueles itens. Por mais louco que pareça, eu acreditava nisso.

Assim como, compreendi e me identifiquei muito com o vazio e a falta de sentido que ela relata nesse livro. O processo de luto tem dessas coisas. A pessoa continua vivendo, saindo para trabalhar, tomando café, regando as plantas, limpando a casa, lendo, assistindo TV, mas quem a vê fazendo todas essas trivialidades, não imagina o esforço hercúleo que ela precisa empreender todos os dias para não desmoronar. A sensação de desolação e vazio são belamente explicadas na obra de Didion.

Como se não bastasse todo esse sofrimento, no ano de 2005, foi a vez de Quintana, sua única filha deixar esse mundo. Em homenagem a ela, Joan escreveu o livro Blue Nights (Harper Collins, 2009), que para mim, foi mais sofrido que o anterior. O título da obra já é uma metáfora do sentimento que permeou seus últimos anos após a morte do marido. Noites azuis se refere a um fenômeno de mudanças de estações em Nova York, onde as noites vão escurecendo aos poucos em vários tons de azul, até chegar na escuridão total. Ela vê esse fenômeno como um prenuncio da morte da filha.

Mas, Didion não vai contar no livro apenas esse período da doença de Quintana. Ela narra a trajetória de vida das duas e principalmente, seus arrependimentos. Quem é mãe, se identifica de cara com os relatos da autora. Joan cita por exemplo, os medos que passou a ter desde que adotou a bebezinha. Medos bastante banais, mas que eu compreendo demais, pois também passei a senti-los com a maternidade. É um sentimento de insegurança total, como se não fossemos capazes de proteger nossos filhos das mazelas do mundo, como se a vida deles estivesse em nossas mãos e que qualquer coisa que desse errado, seria de nossa responsabilidade.

Em um trecho, ela descreve esse medo de forma magnífica:

“Justificamos cada vez mais esse envolvimento elevado com os nossos filhos como algo essencial à sobrevivência deles. Nós mantemos seus números na discagem rápida. Nós os observamos pelo Skype. Rastreamos seus movimentos. Esperamos que todas as ligações sejam atendidas, que cada mudança de planos seja comunicada. Fantasiamos novos perigos sem precedentes em qualquer encontro não supervisionado. Mencionamos terrorismo, compartilhamos advertências ansiosas: ‘É diferente hoje em dia’. ‘Não é mais a mesma coisa’. ‘Não se pode deixar que eles façam o que nós fazíamos’”.

As descrições dela sobre Quintana são belíssimas. Nos apaixonamos por ela somente pelas lembranças da mãe. E como mencionei antes, esses momentos especiais, geralmente são aqueles vividos no dia-a-dia, no cotidiano criado pela família. O amor profundo que tanto Joan e John sentiam pela filha era fidedigno, ela era parte deles, mesmo não sendo biologicamente deles. O que me lembra bastante a minha filha, adotada pelo meu marido e sua família, que sempre a amaram como igual. Didion menciona os preconceitos que enfrentou por adotar uma criança e o medo eterno de que em algum momento os pais biológicos aparecessem para pedir a guarda ou qualquer outra coisa de Quintana.

Ela discute também a questão sobre dizer a verdade à filha em relação a sua origem, mesmo quando a sociedade achava melhor mentir e enganar, fazendo de conta que não existia um perigo iminente de perda ou apenas uma outra família que poderia surgir a qualquer instante. As narrativas que John e Didion resolveram contar à Quintana funcionaram no começo, mas ainda hoje, Joan se questiona sobre sua responsabilidade devido ao sentimento de abandono que acompanhou a filha por toda a sua vida. No capítulo 22, ela diz:

“Todos os filhos adotados, assim me disseram, temem ser abandonados por seus pais adotivos, tal como acreditam terem sido abandonados pelos pais biológicos. Foram programados, pelas circunstâncias singulares de sua introdução na estrutura familiar, a ver o abandono como seu papel, seu fardo, o destino que os dominará, a menos que fujam dele”.

Didion se culpa por não ter percebido o sentimento de Quintana, por não ter conseguido impedir que ela sentisse esse peso. O problema é que ela não sabia disso com clareza. Na verdade, nunca sabemos ao certo se as pessoas que convivem conosco, nossos filhos, marido, pais, amigos, se sentem amados de verdade por nós. Tem coisas que são próprias de algumas pessoas e é difícil penetrar o abismo de suas mentes e mudar o sentimento de tristeza e solidão que se encontra ali. Mas, nós que somos mães, queremos nos certificar de que fizemos todo o possível e também o impossível para impedir o sofrimento de nossos filhos e nos torturamos por isso.

No último ano, perdi duas das minhas pessoas favoritas da vida (como diz a escritora Sylvia Plath). Uma delas, foi minha tia Débora, de quem eu gostava profundamente e de quem não tive oportunidade de me despedir e até hoje, tenho dificuldade em acreditar que ela não faz mais parte desse mundo. Tenho muitas lembranças boas dela, que guardo com muito carinho. Recentemente, perdi meu sogro, que era quase como um pai para mim. Sinto sua falta todos os dias. Com ele, tive mais vivências e muitas lembranças para compartilhar com um sorriso no rosto, como ele gostaria que fosse. Tudo isso me faz pensar que o sofrimento de Didion deve ser tão intenso e tão visceral, que não entendo de onde ela tira forças para continuar.

No capítulo final de Blue Nights, a autora faz uma reflexão sobre a velhice, o ato de envelhecer. Outra passagem que me fez pensar muito em como não damos valor ao que temos. Ela menciona o fato de não ter alguém para colocar no formulário do hospital como contato de emergência. O marido está morto e a filha está morta. Ela pensa em algumas pessoas, mas logo se lembra de que elas têm suas vidas e suas famílias e que talvez não seja apropriado incomodá-las com um telefonema sobre tragédias. É triste pensar que a pessoa que ela mais queria ali era Quintana. O sentimento de solidão que ela relata nessa passagem é de tirar o fôlego.

Terminei de ler o livro sentindo saudades de sair nas ruas sem máscara, de vagar pelo shopping, como nos dias comuns, entrar em uma loja e comprar uma roupa para mim, sem estar precisando dela. Apenas pelo ato de ter algo novo. Sinto falta também de sentar em um café e pedir alguma coisa para comer, sem me preocupar se a pessoa do lado tomou vacina ou não; se a atendente está com covid ou se é jovem demais para ter se vacinado. Também tenho saudades de sentar em um barzinho, tomar uma cerveja e escutar uma boa música. O problema todo é que quando podemos fazer isso de boas, não o fazemos. Ou vemos tudo isso como trivialidades e coisas do cotidiano, que quando elas nos são proibidas, percebemos o valor que elas têm. A pandemia é algo limitante, que nos impede de fazer muitas coisas que gostaríamos de fazer. Assim como no caso de Didion, hoje a velhice é esse fator limitador.

Para finalizar, enquanto ainda podemos, vamos abrir um vinho, preparar um belo jantar e compartilhar com a nossa família mais um momento idiota, que daqui a alguns anos, serão nossas mais caras memórias. Porque na verdade, a vida é isto: uma sequência de momentos compartilhados e vividos, os quais não prestamos atenção, mas quando nos são tirados por qualquer motivo que seja, fazem muita falta. E no final, nossa única certeza é a morte.

5 thoughts on “O universo Joan Didion em dois livros autobiográficos: “O ano do pensamento mágico” e “Blue Nights””

  1. Gostei muito do que li.Angelina tem muita facilidade para colocar no papel suas reflexões e comentários. Ela leva o leitor a ir atrás e ler o livro comentado por ela.Dou- lhe os parabéns! Vá em frente!!!

    1. Que honra ter um comentário seu aqui, tia Valentina. Fico muito feliz por suas observações. Isso me motiva a continuar. 😍

  2. Não conhecia a autora, vou incluir os livros em minha lista de desejos… obrigada pelo ótimo trabalho de divulgação!

  3. Excelente trabalho, Angelina! Gosto muito de seus comentários
    Ainda estou lendo Edith Eva Eger, mas com certeza estarão em minha lista também. Muito obrigada!

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