literatura

Oliver Twist, uma fábula da Inglaterra Vitoriana

Introdução

Ler Oliver Twist nos dias atuais é como realizar uma viagem no tempo e perceber que, infelizmente, os problemas apontados pelo autor há quase dois séculos, ainda existem na nossa sociedade. Segundo Carpeaux (A história da Literatura por Carpeaux, Leya, 2020), Dickens não retrata de forma realista os problemas sociais enfrentados pela Inglaterra de seu tempo. O crítico aponta muitas falhas nesse romance e o considera de mau gosto, caricato e mal-acabado.

Com todo o respeito por esse crítico maravilhoso, com o qual compartilho muitas opiniões, sou obrigada a descordar dessa vez. Consigo fazer uma leitura mais gentil da obra de Dickens e perceber nela apontamentos das mudanças ocorridas após a Revolução Industrial que levaram à um forte êxodo rural, à uma superpopulação urbana e, consequentemente à miséria. É correto dizer que para o progresso chegar e para que a sociedade evolua economicamente e culturalmente, é preciso sacrifícios. Mas até que ponto esses sacrifícios são válidos? E somente as classes desprivilegiadas serão atingidas? Esses são alguns dos questionamentos que pretendo discorrer neste singelo artigo.

  1. Contextualização e período histórico da obra

A sociedade britânica vivia por volta dos anos 1840 as consequências da Revolução Industrial. Por se tratar de uma fase transitória, tudo estava muito confuso e o país se modificava através da força de trabalho coletivo. A urbanização estava começando a tomar forma e o êxodo rural refletia uma realidade nova nas ruas de Londres: muitas pessoas buscando oportunidades, miséria, aglomerações, pessoas de várias nacionalidades vivendo em um mesmo lugar, compartilhando sentimentos complexos de estrangeirismo e as dificuldades da vida moderna.

O modo de vida das pessoas comuns estava se modificando. Novos hábitos estavam nascendo, como por exemplo, frequentar locais públicos, tais como parques, bibliotecas, museus, cafés e praças. Havia uma ruptura com os valores tradicionais do campo e um desejo de se modernizar e se adequar à nova realidade de vida. Todas essas transformações geravam um sentimento de crise, assim como todas as mudanças que enfrentamos, tanto no âmbito individual, quanto no coletivo.

As pessoas transitavam da estratificação, da manufatura e dos valores tradicionais para a luta pela democracia. Nascia aqui uma curiosidade, um desejo de se politizar e de compreender melhor as decisões que eram tomadas nas esferas do poder e que refletiam diretamente na vida do cidadão comum. Desse desejo por igualdade, surge o movimento operário, a reivindicação pelo sufrágio masculino e pela igualdade de direitos, levando às famosas crises existenciais.

Criou-se um abismo entre as classes sociais. De acordo com a Professora Sandra Vasconcelos (Simpósio de 150 anos da morte de Charles Dickens, UNESP, 2020) o sentimento coletivo era de que existiam duas Londres que não se comunicavam: uma formada por pessoas muito abastadas e outra composta por pessoas que viviam em uma miséria extrema, em situação degradante e que eram invisíveis para as classes mais altas e para as esferas de poder.

Charles Dickens pertencia à chamada classe média. Por isso transitava entre as duas classes díspares e tinha a oportunidade de observar o comportamento das pessoas e as escolhas que faziam de acordo com as suas possibilidades. Dessa forma, ele conseguiu captar os sentimentos coletivos da época e coloca-los em seus romances, através de personagens icônicos, satíricos, idiossincráticos e que representassem a grande população de Londres, que terminava por ser também um personagem de seus romances. Oliver Twist foi um dos primeiros folhetins publicados pelo autor e vai denunciar os maus-tratos com as crianças pobres da Inglaterra.

2- O enredo e as denúncias sociais presentes no romance

Através de um narrador onisciente em terceira pessoa, Dickens apresenta ao leitor um romance de formação, contando a história do menino Oliver Twist, órfão de pais desconhecidos e que por isso precisa ser educado no abrigo de pobres e contar com a “benevolência” das pessoas. Seus problemas começam logo na primeira infância, pois para todos os responsáveis por ele, este seria um garoto perdido e fadado à forca. Ele não encontra empatia em ninguém e menos ainda algum afeto ou amor.

Oliver é enviado a uma espécie de creche, onde ficam as crianças órfãs até os nove anos de idade. Nesse lugar, elas podem ser adotadas ou mesmo morrer por inanição e doenças. É importante lembrarmos que a infância que conhecemos hoje não existia na Inglaterra Vitoriana. As crianças eram apenas mini adultos e precisavam seguir regras de comportamento muito rígidas. Além dos maus-tratos constantes que sofriam: surras, humilhações, escravidão, além do frio e da fome constantes que passavam e que os deixavam muito vulneráveis às epidemias e doenças daqueles tempos.

Aos nove anos, o garoto volta para o abrigo de pobres com o intuito de “ser um aprendiz”, sendo esse apenas um eufemismo para escravidão infantil. Motivado pelos colegas, como uma espécie de bullying da época, Oliver pede um pouco mais de mingau ralo aos responsáveis – pessoas essas que eram vistas pela sociedade como as mais nobres, gentis e bondosas da vila – que lhe ensinam de forma cruel que não se deve pedir mais comida. Afinal, eles são tão generosos que abrigam e alimentam esses pequenos delinquentes, em vez de abandoná-los à própria sorte. Como castigo por essa insubordinação, Oliver é colocado à venda por um dos personagens mais execráveis e caricatos da literatura, o Sr. Bamble, o bedel do abrigo de pobres. Mas, essa venda era reversa: alguém receberia dinheiro pelo pequeno Oliver.

Para a sorte do garoto, pela primeira vez, um personagem, o juiz local, percebeu a crueldade com a qual ele era tratado e negou a permissão a um limpador de chaminés de levar Oliver com ele como aprendiz. Dickens começa as suas denúncias sociais através desse contexto: os personagens são muito caricatos e sua narrativa é extremamente irônica e debochada, mostrando ao leitor as contradições da sociedade e a hipocrisia que dominava todas as relações desses personagens. O limpador de chaminés queria uma criança pequena para ser sacrificada no trabalho escravo. Ele afirma que dava pouca comida às crianças que trabalhavam para ele, mantendo-as magras e subnutridas para conseguirem subir mais alto, dando-lhe maiores ganhos com o seu serviço.

Porém, o Sr. Bamble consegue vender Oliver ao dono da funerária da cidade. Apesar desse homem tentar ser justo e bondoso, ele estava cercado de pessoas ruins, como sua esposa, sua ajudante e o funcionário da funerária, que era uma pessoa ridicularizada na vila por ser filho de um alcóolatra e desconta todas as suas agruras em Oliver, que estava em desvantagem. A chegada do garoto na casa dessas pessoas é muito triste e chocante. A ajudante lhe oferece os restos da comida do cachorro e ele a devora de tanta fome. O narrador aproveita essa deixa para criticar todas as pessoas que se dizem eruditas e filosóficas, mas não conseguem sentir o mínimo de empatia por ninguém.

Cansado de tantas humilhações e percebendo que ninguém nessa vila gostava dele, Oliver resolve fugir para Londres. Ele acha que na cidade grande terá maiores oportunidades, que conseguirá sobreviver e encontrará pessoas melhores, mais gentis e bondosas. Mas, não é o que acontece. Logo na chegada, Oliver conhece o bando de ladrões liderado por Fagin, o famoso judeu. Ele é acolhido por esse grupo de pessoas, às quais começa a se afeiçoar, percebendo nelas qualidades e sentimentos positivos. Porém, em um certo momento, ele é envolvido em um roubo e por um triz não é preso. Este é outro trecho do romance que nos faz pensar muito nas relações sociais e na nossa negligência. O garoto tenta contar a verdade e denunciar os colegas pelo assalto, mas como ele ficou para trás e os dois já tinham se misturado à multidão, passa a ser perseguido como o culpado. Ninguém procura ouvi-lo e entender o que está dizendo. A partir do momento em que um desconhecido qualquer o acusou, toda a multidão segue atrás do menino sem questionar absolutamente nada. É um comportamento de manada, agressivo e violento.

Mais uma vez Oliver é salvo e “adotado” pela vítima do roubo. Mas sua felicidade dura pouco tempo. Os ladrões, com medo de serem descobertos, sequestram o menino e o levam de volta ao pardieiro onde viviam. Alguns dias depois, Oliver é forçado a participar de um assalto grande, à uma casa de família onde só moravam mulheres. Ele suplica para não ter de fazer isso, mas é obrigado. Ao tentar avisar as pessoas que estão na casa sobre o roubo, Oliver é baleado e posteriormente abandonado pelos ladrões em uma vala para morrer. É triste observar que sempre que ele tenta fazer a coisa certa, é impedido por alguém, ridicularizado e desacreditado por todos os adultos. Mas dessa vez, Oliver terá um pouco de sorte na vida e descobrirá o seu passado e a sua história.

Dickens através dos personagens colocados nessa trama de aventura, discute muitos temas abrangentes e importantes em qualquer tempo: a tenacidade em ser bom, a resiliência do personagem, a humanidade dos outros (os ladrões) mesmo sendo maus e cometendo crimes, são pessoas e têm sentimentos nobres. Na verdade, ele vai mostrar que esses homens se tornaram ladrões devido às condições de vida da época. As dificuldades, o preconceito, a falta de oportunidades, a escassez e o início da miséria colocaram essas pessoas na vida do crime. A personagem Nancy é o maior exemplo de uma pessoa digna em um ambiente hostil. Ela foi criada por Fagin desde criança. Aprendeu a roubar e a se prostituir. Não conseguia ver alternativas para si. Sabia que não conseguiria um bom emprego ou casamento, sendo órfã ou não possuindo um sobrenome que a tornasse digna e merecedora de oportunidades. Assim ela continua fazendo o que tem de fazer, mas salva Oliver do mesmo destino.

Por outro lado, ela se recusa a denunciar Fagin, pois ele é a família que ela tem. Mas, Sikes, o outro ladrão, o mais cruel e implacável, ao saber que ela contou aos tutores de Oliver algumas conversas perigosas e comprometedoras que escutou entre o bando, a mata sem dó, de forma brutal e desumana, sendo este um dos momentos mais tristes do romance. Nancy representa muitas metáforas nesse contexto. A falta de dignidade da pessoa humana, o contraponto entre a vida pacata do campo e a vida bárbara da cidade grande – o campo significa a redenção, que ela negou e a cidade a perdição, a qual ela “escolheu”. Também há uma forte presença de um determinismo na obra. Nancy sabe, no seu âmago, que não conseguiria ter uma vida próspera em outro lugar, como uma “dama da sociedade”. Ela não se enxerga como tal e por ser uma pessoa leal, não abandonaria Fagin, que a criou e protegeu à sua maneira durante tantos anos. O lugar ao qual ela pertence, em uma expressão popular “o seu lugar na fila do pão” é na cidade pervertida mesmo.

Considerações finais

Charles Dickens mostra ao leitor no romance Oliver Twist a discrepância entre as duas Londres existentes e que não se conversam: a dos ricos e a dos pobres. O abismo entre as classes sociais é o mote para as discussões propostas pelo autor. Ele denuncia a falta de responsabilidade social daqueles que possuem condições de ajudar ou de mudar as coisas. Observa como uma criança é inserida no mundo do crime e condenada desde o nascimento a uma vida degradante devido ao preconceito. O final da obra, com a descoberta das origens de Oliver mostra que as tradições e convenções sociais são as principais responsáveis pelo infortúnio de muitos pobres que vivem no submundo e nas ruas de Londres.

Por outro lado, alguns personagens que promoveram tantas discórdias, tantos entreveros na vida de Oliver e de outros personagens são punidos, principalmente por sua própria culpa. Este é o caso de Fagin, que depois de preso, precisa conviver consigo mesmo na cela e através de uma bela metáfora, o sol bate na janela e ilumina o crime, mostrando que não temos como fugir das nossas responsabilidades, principalmente, não podemos fugir de nós mesmos.

Oliver como o menino herói, perdoa Fagin por tudo e fica com ele até o fim, na sua cela. Ele consegue perceber naquele pobre judeu o mínimo de humanidade e bondade e se sente grato por tudo o que esse homem fez por ele: tratou-o com dignidade e não o agrediu ou ofendeu como os outros. Tentou protege-lo quando pode e isso era o melhor que tinha a oferecer, dentro do seu contexto de miséria e dor. A cidade de Londres foi uma das protagonistas de Dickens nesse romance como em vários outros do escritor. Sem essa personagem gigante, não teríamos a história de tantas vidas que circulam nas grandes metrópoles através dos tempos, em busca de oportunidade e de uma vida melhor, o que nem sempre se realiza da forma como esperamos.

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