crítica

Ópera dos mortos – Autran Dourado

Clássico contemporâneo brasileiro, escolhido pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) como obra representativa da literatura universal, colocando a cidade de Patos de Minas, na região do Alto Paranaíba no mapa do cânone literário, Ópera dos mortos é um dos livros mais icônicos do escritor Autran Dourado e que traz questões importantes para discussão e reflexão, além de apresentar um pouco do contexto do estado de Minas no século XX.

Em uma reportagem publicada no jornal Estado de Minas, dia 03 de janeiro de 2023, o filho mais novo do escritor, Lúcio Autran disse ao jornalista Gustavo Werneck “Meu pai dizia que ‘Ópera dos mortos’ era para ser lido como uma tragédia, e não um romance, pois remete a ‘Antígona’ (tragédia grega de Sófocles). Uns veem o livro como uma metáfora da loucura, outros da morte”.

Essa afirmação de Lúcio corrobora a lista de obras clássicas da literatura universal que foi divulgada recentemente e que influenciou o escritor em seus textos. Nesta lista encontramos livros como “A montanha mágica” de Thomas Mann, “O homem sem qualidades” de Robert Musil, “Édipo Rei” e “Antígona” de Sófocles, “Ilíada e Odisseia” de Homero, “O som e a fúria” de Faulkner, obra com a qual Ópera dos mortos faz um forte diálogo, “Ulysses” e “O retrato do artista quando jovem” de James Joyce, onde também conseguimos perceber afinidades desses livros com Ópera dos mortos, “A consciência do zeno” de Ítalo Svevo, “Prometeu acorrentado” de Ésquilo, “O mundo como vontade e representação” de Schopenhauer, “O nascimento da tragédia” de Nietzsche, “Os sofrimentos do jovem Werther” de Goethe, “Memorial de Aires” de Machado de Assis, “Salambô” e “Madame Bovary” de Flaubert e o icônico “Dom Quixote” de Cervantes.

Essas influências são interessantes porque quando escrevemos alguma coisa, seja ficção ou não-ficção, os nossos interesses e as nossas influências de mundo aparecem na nossa escrita. Dessa forma, quando os relógios da casa da protagonista Rosalina foram apresentados em Ópera dos mortos, imediatamente, me lembrei de O som e a fúria de Faulkner, que aborda bastante a questão do tempo. O mesmo acontece com os livros de Joyce, modernista que também discutia fortemente a tanto a questão do tempo subjetivo e do tempo real, quanto a influência do meio sobre o indivíduo, fugindo um pouco da lógica do determinismo do final do século XIX.

Considerando que o autor usou as suas influências nesse livro, ele  cria em Ópera dos mortos uma história de mistério, morte, tragédia, junto a um regionalismo que em muitas passagens lembram Guimarães Rosa, com personagens icônicos, fortes e extremamente bem construídos, envolvendo o leitor nessa ambientação sufocante do casarão, que em determinado momento se torna um personagem da obra, porém, com um texto mais próximo da geração de 1930, que dos modernistas que o influenciaram tanto, como Faulkner e Joyce.

Ao mesmo tempo em que o enredo é simples, ele é também complexo. Acompanhamos nessa jornada a família Procópio, que tem como patriarca Lucas Procópio, homem branco, rico, proprietário de terras, uma pessoa sem moral e sem caráter, fazia maldades às pessoas sem precisar de motivações para tanto, cruel, misógino e cheio de desafetos na cidade. Após o seu falecimento, o filho João Capistrano, de personalidade oposta à do pai, recomeça a trajetória da família de forma mais amigável, conquistando amigos e afetos na pequena cidade, onde oferecia recepções e festas muito populares. Até que resolveu entrar para a política.

Neste ponto, o autor começa as suas discussões principais do livro: a decepção que João Capistrano vai sofrer ao vencer as eleições e tentar implantar medidas que promovem a igualdade social, mas é impedido de coloca-las em prática, sendo rechaçado por aqueles que se diziam seus amigos, ao passo em que também descobre inúmeras falcatruas na prefeitura, porém, não pode fazer nada para impedi-las ou denunciá-las. A corrupção, algo que desintegra o Brasil desde que ele foi invadido pelos portugueses, é a causa do isolamento da família Procópio e de sua solidão eterna.

A trama segue, até que João Capistrano falece e Rosalina assume a propriedade da família, mantendo a tradição iniciada pelo pai, de não se comunicar com ninguém da cidade, não sair de casa e viver enclausurada no casarão decrépito, em uma solidão profunda. Rosalina não vive sozinha. Ela tem como companhia Quiquina, uma mulher negra e muda, que trabalha para a família Procópio desde os tempos do avô, Lucas. Quiquina é uma personagem bastante significativa porque apesar de muda, ela ouve e, através de mímicas e de uma comunicação corporal, ela faz a mediação entre o casarão e o mundo externo. Quiquina é responsável pelas compras da casa e por vender as flores artesanais produzidas por Rosalina.

O autor coloca aqui uma personagem com muitas camadas, simbolizando o silenciamento das pessoas negras no século XX, que apesar de contribuírem de forma significativa para a manutenção das casas e das vidas privilegiadas das outras pessoas, elas nunca tinham voz ativa, seus direitos foram suprimidos, eufemisticamente colocados como “ela é quase da família”, mas não toma decisões, não opina, não escuta – ou se escuta, guarda para si – e também não vê. Todos esses simbolismos aparecem em momentos decisivos do livro e na verdade, é Quiquina quem vai decidir o desfecho dessa tragédia.

Em um certo momento, aparece na cidade um viajante chamado José Feliciano ou José Passarinho. Temos aqui um personagem muito interessante, o típico brasileiro, que persevera, gosta de uma boa prosa, de uma dose de cachaça, contador de causos, daquelas pessoas que geralmente ganham a confiança e a amizade de todos. Sua chegada é um divisor de águas na vida de Rosalina, porque, devido à sua necessidade de ouvir a voz humana, ela o contrata para trabalhar no casarão. Na verdade, José Feliciano era a pessoa perfeita para o serviço: forasteiro, não sabia nada sobre a sua história e aparentemente, era alguém que ela poderia dominar.

Notem que o nome desse personagem já constitui outro símbolo muito importante para a análise da obra: Feliciano, remete à felicidade e Passarinho, à liberdade. Temos aqui um contraponto à vida da protagonista Rosalina, que é uma pessoa presa ao passado, morta em vida pelo ódio cultivado por seu pai e, portanto, totalmente infeliz. É claro que que esse encontro dos dois vai gerar consequências ruins para ambos. Outro simbolismo forte em Ópera dos mortos é a chegada na cidade de José Feliciano – na entrada da parte urbana, há algumas crateras na estrada, provenientes das voçorocas (fenômeno geológico que consiste na formação de grandes buracos de erosão, provocados pelas chuvas e intempéries do tempo, em solos com pouca vegetação). Ao ver esses abismos, José Feliciano sente um presságio de algo ruim, um incômodo forte, mas que depois acaba esquecendo e deixando para lá.

Pode-se comparar a vida no casarão junto a Rosalina, como uma espécie de voçoroca, que arrasta as pessoas para a dor e a solidão. O peso do ódio e dos rancores da sua família, impedem que uma moça aparentemente bonita, saudável e jovem, viva sua vida de forma normal e plena, fazendo dela uma escrava do tempo, onde as horas não passam, os dias são iguais e os pêndulos dos relógios batem como se anunciassem o tempo todo uma tragédia iminente. Essa ambientação do casarão e dos relógios é tão vívida na escrita do autor, que o leitor consegue sentir o peso da solidão e até mesmo escutar o barulho dos pêndulos.

A dança macabra encenada entre Rosalina e Quiquina é quebrada pela presença de José Feliciano. Diferente da ajudante, o forasteiro tem voz e questiona muitas coisas que lhe incomodam na casa. Até então, Quiquina via e não contava, substituía objetos sem questionamentos e sem perguntas indiscretas, apenas compreendia o que era para ser feito, sem que Rosalina precisasse falar. Ela também tinha ouvidos seletivos: escutava o que era importante e guardava as informações que não deveriam ser compartilhadas. Além disso, sabia bem qual era o seu lugar na casa, pois, desde a época do Coronel Lucas Procópio, isso lhe é lembrado e dito, muitas vezes de forma hostil. Porém, José Feliciano não está satisfeito com essas divisões de classe. Em sua chegada, ele se aborreceu quando Rosalina de forma arrogante e incisiva mandou-lhe entrar pela porta dos fundos e não pela da frente, mostrando a ele o lugar onde ela e as pessoas de sua classe social gostariam que os empregados ocupassem.

Esse conflito, que tem uma abordagem social, é também psicológico, pois, o leitor consegue acessar os pensamentos de José Feliciano e sentir o seu desconforto em relação à essa situação específica e a raiva que lhe cresce no peito por passar por essa e outras humilhações. Os sentimentos dos personagens e esse acesso que o autor permite ao leitor através do discurso indireto livre, característica do modernismo, deixa Ópera dos mortos em um lugar que realmente beira a loucura, como afirmou Lúcio Autran na reportagem citada no início do texto. Pode-se fazer uma leitura da obra como se fosse uma criação de uma mente perturbada, ou seja, nada é real. O que aliás aparece no final do romance e que serve como chave de leitura para o livro, sob a ótica da psicanálise.

Autran Dourado vai trabalhar muito neste livro também a questão da causa e consequência na vida. Todas as ações dos personagens trazem algum tipo de reação, que vai recair sobre eles mesmos. No ensejo da morte de José Capistrano, Rosalina teve a chance de escolher a vida no lugar da morte. Mas ela escolheu seguir os passos do pai, não se permitindo uma nova oportunidade de conhecer as pessoas e tirar as suas próprias conclusões. Simplesmente aceitou a opinião de seu pai como uma verdade absoluta, o que pode ser uma escolha baseada no respeito ou mesmo no comodismo. Afinal, Rosalina precisaria sair da sua zona de conforto e enfrentar o mundo lá fora, algo que ela nunca havia experimentado. Certamente escutaria a opinião adversa dos seus conterrâneos e isso poderia trazer-lhe dor. Porém, ela cresceria como indivíduo e poderia saber se defender dessas intempéries.

Essa questão da causa e consequência, serve para todos os leitores em suas vidas cotidianas. Muitas vezes, preferimos nos blindar dos sofrimentos, permanecendo onde estamos e acreditando apenas em uma versão da história, sem buscar as outras vozes, que muitas vezes são caladas, colocando-nos em uma situação unilateral, que impede a reflexão e o pensamento crítico. Algo que Rosalina não tem. E dessa forma, ela se transforma em duas mulheres diferentes: a Rosalina do dia, aquela que dá ordens, que faz artesanato, séria e de poucas palavras, em total oposto à Rosalina da noite, que bebe e fala muito, se solta e tem sonhos calientes.

A presença do duplo na obra também pode ser mais um símbolo utilizado pelo autor para mostrar que o ser humano é feito de várias facetas, que ele não é apenas aquilo que aparece aos outros, ele se mostra aos poucos, assim como as rosas, produzidas pelas mãos da protagonista Rosalina. A cada camada, a pessoa escondida e calada aparece e se revela. Esse processo do desabrochar, seja essa uma metáfora para o bem ou para o mal, acontecerá com todos os personagens em Ópera dos mortos: nenhum deles é o que parece ser, todos são revelados aos poucos e todos terminam a obra transformados.

Ópera dos mortos foi uma grata surpresa para mim. Já era um livro que estava no meu radar para ser lido e quando foi reeditado pela editora Harper Collins e teve leitura coletiva com a Duda Menezes, foi o momento certo para fazer essa leitura. É claro que pretendo ler todos os livros do autor, pois já ouvi dizer que são todos maravilhosos e cheios de símbolos, referências, intertextos e afins para desvendarmos. A escrita de Autran Dourado é elegante, mas ao mesmo tempo seca, suas descrições de ambientes, do tempo e da atmosfera do romance são magníficas. Foi um livro que eu não tinha vontade de largar e que ficou comigo por muito tempo após a leitura. Certamente, este é um livro que nos faz pensar e refletir sobre muitos temas importantes para a vida. Recomendo fortemente a leitura desse clássico mineiro.

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