crítica

Os Buddenbrook – Thomas Mann

Ambientado na segunda metade do século XIX, publicado em 1901, Os Buddenbrook (Cia das Letras, 2016) foi o primeiro romance do escritor alemão. Por esta história, o leitor pode perceber alguns traços que marcaram a trajetória do autor em seus romances seguintes: narradores irônicos oniscientes, que julgam os personagens; a erudição de Thomas Mann infiltrada em seu texto, tanto na narrativa quanto nas falas dos personagens; seu amor pela música e pela arte; a influência da filosofia do final do século XIX e das vertentes novas de pensamento e as tramas complexas, de enredo triste, permeadas pelo sofrimento e pelo destino inexorável. Em Os Buddenbrook percebemos claramente as influências naturalistas do autor, sendo este considerado o único romance naturalista alemão. O determinismo é bastante desenvolvido no enredo, o que me lembrou por diversas vezes Os Maias do Eça de Queiroz: tanto na parte estética quanto na trama como um todo. Mas tudo bem, vamos ao enredo de Os Buddenbrook, seus personagens icônicos e as discussões mais relevantes propostas por Mann nesse romance de peso.

O subtítulo dessa obra é “a decadência de uma família”, o que já deixa implícito que o final será triste e decadente. Aqui conhecemos o Cônsul Buddenbrook, que vem de uma família tradicional da Alemanha, possuindo um nome a zelar e uma empresa para dar continuidade. Afinal, este empreendimento está na família há mais de três gerações e a cada um que passa, há o peso da responsabilidade e da obrigação de progredir e manter o nome dos Buddenbrook em uma boa posição social e econômica. Tarefa árdua para a época em que a trama se desenvolve, pois, o mundo estava em um momento de transição entre o fim do feudalismo para o capitalismo e assim, os paradigmas estavam mudando muito. Os sobrenomes e os títulos de nobreza já não diziam muita coisa quando essas famílias não tinham mais dinheiro. A burguesia, nova classe social estava em ascendência e por isso, os chamados “novos ricos” estavam ocupando o lugar das famílias tradicionais, obtendo maior poder aquisitivo e deixando para trás a aristocracia.

A questão é que os valores aristocráticos incutidos na mente das pessoas dessa classe social não evaporam com o vento. Essas tradições que para nós leitores do século XXI não significam nada, para eles, naquele momento, significava tudo o que tinham. E é aqui que Thomas Mann dá um show de narrativa, apresentando para nós os quatro filhos do cônsul e seus agregados em sua luta inglória contra si mesmos e contra as mudanças sociais e econômicas que precisam enfrentar. Logo no início da história, conhecemos Thomas, Christian, Antonie e Klara, além da consulesa Buddenbrook, mãe dos quatro. Thomas é um rapaz jovem, cheio de vida e que está aproveitando o momento para viajar e conhecer o mundo, observando as oportunidades que se apresentam para ele. Christian já tem um temperamento mais rebelde, mora em outra cidade e não demonstra o menor interesse em assumir os negócios do pai. A sua opção de vida é o carpe diem, ele não pensa no futuro e pretende apenas viver o presente. Antonie é uma moça de quinze anos, que está começando a vida. Apesar de muito obediente, tem uma certa dificuldade em aceitar as escolhas de seu pai e deseja ter voz ativa para fazer as suas próprias escolhas e seguir o caminho que acredita ser bom para si. Klara é uma moça doente. Ainda criança, exige cuidados da família, pois, tem problemas graves de saúde e os seus acreditam que ela não passará da adolescência.

O primeiro conflito da obra e que servirá como mote para muitas discussões de gênero ao longo do romance é o casamento de Antonie ou Tony. Em uma viagem de férias, a garota se apaixona por um rapaz que faz parte da burguesia e assim, ele pede a ela um tempo para se formar advogado e pedir a sua mão para sua família. Ela fica muito empolgada e escreve ao seu pai dizendo que tomou essa decisão: esperar por seu amado. Entretanto, o pai não aceita essa ideia e usando o nome de Deus, a religião e os bons princípios da família Buddenbrook, convence a filha a se casar com um homem muito mais velho que ela, mas que possui nome e uma “contabilidade impecável”. Passado um tempo, eles têm uma filha pequena e essa contabilidade perfeita começa a ruir. O cônsul, muito arrependido de sua decisão de casar a filha com esse indivíduo, leva-a de volta para casa com a sua neta, e assim Tony Buddenbrook passa a ser uma mulher divorciada.

Nem é preciso dizer que uma situação dessas no ano de 1865 era inaceitável para a sociedade em questão. Neste ponto, o autor discute a situação de Tony em duas vertentes: a primeira, dela mesma se sentindo oprimida, excluída e vivendo os conflitos internos das escolhas que foi obrigada a fazer. Por outro lado, ela entende a posição do pai e compreende que todos foram enganados por um patife. A segunda vertente de discussão utilizada pelo autor vem das pessoas que convivem com Tony e frequentam a sua casa. Apesar de todos eles saberem quem era o marido dela e o terem ajudado a enganar o cônsul, todas essas pessoas viravam a cara para Tony e a excluíam do convívio social. Falavam mal dela em suas costas e ridicularizavam a sua situação infeliz. Os conflitos internos da personagem e o desenvolvimento de seus sentimentos, o seu amadurecimento e ao mesmo tempo o seu apego às tradições e ao passado, são excepcionais. Thomas Mann conseguiu passar ao leitor uma veracidade de sentimentos impressionantes. Para mim é um dos pontos mais altos do romance.

O próximo conflito que também altera drasticamente o enredo, é a morte do Cônsul e o fato de Thomas assumir os negócios do pai e também a liderança da família Buddenbrook. Em minha opinião, Thomas é um dos personagens mais complexos e mais bem construídos que já li na vida. Ao se tornar o patriarca da família, ele deixou de existir como indivíduo. Abriu mão de todas as suas querências pessoais em prol das coletivas e daquelas que seriam boas para o nome da família e para a honra dos seus. Assumiu os problemas de Tony, de Christian, de Klara e da mãe. Casou-se com a mulher considerada certa para acompanha-lo em sua jornada, abrindo mão daquela que amava de verdade. O casamento feito como um negócio, claramente não deu certo: cada um era infeliz à sua maneira e em sua solidão. Esse aspecto do casamento de Thomas é bastante explorado pelo autor, mostrando ao leitor a infelicidade dos dois e a sua grande incompatibilidade de gênios.

Além disso, Thomas vivia para o trabalho. Ele não trabalhava para se sustentar, mas o trabalho se transformou em sua vida. Ele não se permitia mais prazeres, passava a maior parte de seu tempo no trabalho ou falando sobre o trabalho. Não tinha tempo para viajar ou sair e lutava ferrenhamente para manter a empresa construída por seus antepassados de pé. Porém, esse esforço parecia cada vez mais em vão. Os negócios já não eram os mesmos, a segurança econômica estava ameaçada pelos avanços econômicos e pelas novas modalidades de empreendimentos e claro, pela chegada da burguesia com o seu alto poder aquisitivo e now how totalmente inovador e progressista. Em determinadas passagens do romance, sentimos ódio de Thomas. Ele consegue ser frio, cruel, mau e até mesmo insensível. Porém, ele é tão complexo, que passadas as cenas de confronto dele com os irmãos, ele começa um monólogo interior onde o leitor pode entender o que se passa em sua mente e como ele está sofrendo com toda essa responsabilidade em suas mãos. Thomas é o pilar da família Buddenbrook e não pode fraquejar e nem se mostrar vulnerável diante das pessoas. Ou seja, ele passa a vida fingindo, usando as famosas máscaras sociais.

Christian começa a apresentar também uma saúde frágil. Por ser enfermo e ter constantes dores no corpo, perde a capacidade produtiva. Ele reclama disso, mas na verdade nunca levou jeito para o trabalho duro. Sempre viveu às custas do pai e do irmão, contando com a ajuda de terceiros para dizer o que bem entende e para negar as tradições e tentar romper com essas manias aristocráticas que para ele são acachapantes. Mas, ele também não tem um destino feliz. Sempre foi apaixonado por uma mãe solteira, o que impedia a união dos dois. Afinal, um homem da aristocracia não poderia desposar uma mulher que tem dois filhos sem pai. Enquanto sua mãe estava viva, abriu mão desse sonho, porém, manteve o relacionamento com Aline, sua amada. Após a morte da mãe, protagonizou um embate com o irmão Thomas para casar-se com ela. Thomas foi contra e argumentou coisas vazias de sentido para qualquer um de nós. Porém, após a morte de Thomas, Christian consumou esse casamento e terminou como a mãe e o irmão mais velho disseram que terminaria. Não vou contar o que acontece, mas é muito triste e mostra o destino inexorável sobre as pessoas.

Klara também se casou apesar da saúde frágil. Viveu pouco e seu marido não somou muita coisa na família Buddenbrook. Esses foram personagens bastante secundários, mas ainda assim, estavam por ali compondo essa história fatídica. Como a obra atravessa gerações, Thomas teve um único filho com Gerda: Hano. A princípio, não se sabia se ele iria sobreviver, pois nasceu prematuro e com a saúde frágil desde bebê. Teve problemas de dentição, vivia com corpo inflamado, tinha o estômago frágil e uma grande dificuldade de aprendizado na escola. A única coisa que lhe interessava era a música. Conhecendo Thomas como já conhecemos, é fácil compreender que para ele esse filho representava um grande desgosto. Ele esperava muito do garoto, mais era bastante perceptível que ele não corresponderia aos anseios do pai. Nunca iria assumir os negócios da família.

Desde o começo da história, é narrado com muita precisão a árvore genealógica da família, que ficava em um caderno sobre a mesa do Cônsul e posteriormente na mesa de Thomas. Um dia, Hano vai até lá e faz um traço embaixo de seu nome, demonstrando que a dinastia Buddenbrook terminaria ali, de sua parte. Esse acontecimento deixou Thomas furioso. Por outro lado, ele se convenceu de que não deveria esperar nada do filho, que talvez o império da família terminasse em suas mãos. Essa é uma cena bastante emblemática do romance porque mostra a frustração de Thomas em não ser capaz de manter uma empresa de três gerações. É uma sensação de fracasso e de incompetência, mesmo tendo feito tudo o que podia em relação à família e à empresa. Esta é mais uma das tantas discussões que o romance traz: quantos de nós não enfrentamos esse sentimento na nossa vida atual? Thomas faz reflexões bastante filosóficas em relação a isso, mostrando que mesmo tendo consciência de que nada mais poderia ser feito, ele se sente fracassado e impotente diante das agruras da vida.

Por fim, Érika, filha de Tony também fez um casamento infeliz. Aqui temos duas questões bastante importantes para discussões: o marido dela era um burguês e sua entrada na família Buddenbrook foi permitida após uma reunião e várias deliberações, pois, não seria recomendável que uma pessoa “sem berço” entrasse para o clã. Por outro lado, eles precisavam casar Érika, que já estava passando da idade de encontrar um marido e assim, por tabela, resolviam também o problema de Tony, uma mulher divorciada que dependia da mãe e posteriormente de Thomas para sobreviver. É claro que não era uma opção para Tony trabalhar. Mulheres aristocráticas não faziam isso. Apenas ficavam em casa comandando os jantares, as festas e os empregados. No máximo poderiam tocar algumas músicas no piano. A outra questão que está em voga para discussão em relação ao casamento de Érika é o fato do marido dela ser acusado e posteriormente preso por fraude de impostos, ou seja, a famosa sonegação de impostos. É gozado que o autor tenha imputado esse crime a um membro da nova classe social, como se apenas ali, em meio aos “novos ricos”, houvesse corrupção.

Com a prisão do genro de Tony, a situação das duas mulheres perante a sociedade ficou ainda pior. Elas passaram a ser desprezadas tanto pelos antigos amigos da aristocracia quanto pelos burgueses, que também não tinham interesse em conviver com pessoas de má reputação. Era muito comum naquela época, que os membros dessa nova classe social tentassem ascender casando-se com membros da aristocracia falida ou sendo bons amigos deles. Dessa forma, sua “falta de berço” se resolvia com dinheiro. Tony e Érika foram subjugadas, humilhadas e relegadas ao esquecimento depois que a família toda se desintegrou. É triste ver Tony olhando para o passado, chorando a perda da mansão dos Buddenbrook e vivendo em negação, como se a atualidade não representasse mais nada, apenas a sombra de um passado glorioso a sustenta de pé na velhice. Essa também é uma situação muito crível porque no começo do século XX tivemos notícias de muitas famílias que perderam tanto o poder aquisitivo quanto o prestígio social e os seus sobreviventes eram mantidos por lembranças do passado, da vida que um dia tiveram e que atualmente não têm condições de manter.

Thomas Mann desenvolve muito bem todos esses temas, mas não de forma escancarada, didática e chata. Ele constrói os núcleos de personagens e todos esses acontecimentos estão ali nos diálogos dos personagens, nos monólogos interiores, no narrador intruso, que critica algumas situações e alguns preconceitos e no conhecimento prévio do leitor. Não adianta ler o romance e esperar ver tudo isso explícito no texto. Os melhores escritores são aqueles que deixam as coisas mais importantes de sua obra nos subentendidos, nos não-ditos. É importante ter esse conhecimento prévio sobre a época retratada por Mann para compreender os acontecimentos dentro desse contexto. No final da edição há um posfácio que ajuda muito a colocar as ideias em ordem e perceber mais camadas que esse grande romance de estreia nos apresenta. Não é à toa que Thomas Mann é um dos meus escritores favoritos da vida. Nunca li nada ruim que esse homem escreveu. Recomendo demais essa obra, como todas as outras dele para vocês.

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