crítica

Os filhos da meia-noite – Salman Rushdie

A ideia desse romance é genial: contar a história conturbada da Índia através de episódios da vida do protagonista Saleem Sinai, que nasceu exatamente à meia-noite de 15 de agosto de 1947. Sim, esse é o dia em que a Índia se tornou independente do Império Britânico e passou a ser um país livre. Entretanto, para contar essa história, o autor vai usar e abusar da imaginação, da criatividade, do realismo mágico, da oralidade e da prosa prolixa para conduzir o leitor a um mergulho em metáforas muito bem elaboradas e conhecer mais sobre o seu país tão querido.

Antes de falar um pouco sobre o enredo, o contexto histórico e as minhas impressões, é importante dizer que Salman Rushdie é uma figura lendária no meio literário, uma celebridade. Isso aconteceu a partir de 1988, quando o autor publicou a sua obra mais conhecida, Os versos satânicos e foi jurado de morte pelos líderes islâmicos do Paquistão. No mês passado, quando participava de um evento literário em Nova York, o autor sofreu um atentado a bala, ficando gravemente ferido. Rushdie descobriu a sua vocação para a escrita aos 10 anos de idade e aos 13 já estava morando em Londres a fim de estudar e se preparar para o futuro como escritor de sucesso. Seu segundo romance, Os filhos da meia-noite (Cia das Letras, 2006) foi premiado, adaptado para o cinema e fez bastante sucesso entre público e crítica. Rushdie ficou tão famoso, que fez uma participação especial no filme O diário de Bridget Jones em 2001, além de estar sempre em alta nos eventos literários e ter os seus livros figurando nas principais listas de leituras obrigatórias elaboradas por grandes críticos literários.

Falando um pouco sobre o enredo de Os filhos da meia-noite, conhecemos Saleem Sinai, um homem que está contando a sua história para Padma, sua amante, assim como Riobaldo conta a sua história para um doutor. Digo isso porque é importante que o leitor ao se aventurar pelas páginas desse romance longo e prolixo saiba que vai encontrar um texto entrecortado, cheio de idas e vindas no enredo, muitas vezes confuso, assim como o lençol cheio de buracos do seu avô médico, que o levou a se apaixonar por sua avó. Sim, o contador de histórias começa do começo, quando o seu avô foi chamado por um comerciante local para examinar sua filha, mas em 1919, um homem não poderia ver uma mulher por inteiro e então, ele criou um mecanismo onde a filha mostrava ao doutor a parte do corpo que doía, através de um buraco no lençol. Aos poucos, ele viu todo o corpo da futura esposa, montou aquela imagem em sua cabeça e se apaixonou por ela. E é assim que Rushdie espera que o seu leitor se apaixone pela Índia, ou pelo menos por sua história conflituosa e cheia de lacunas que ainda estão sendo preenchidas ao longo do tempo.

Para maior compreensão da história, o contexto em que os principais acontecimentos se dão é fundamental. Caso contrário, o leitor ficará um tanto perdido nas tantas metáforas que Rushdie utiliza para ilustrar os conflitos pelos quais a Índia passou a partir do final da Segunda Guerra Mundial. As mudanças ocorridas a partir das batalhas na Europa fizeram com que os países que ainda eram colonizados pleiteassem a sua independência de forma mais contundente. Movimento parecido está acontecendo agora, com o ensejo da morte da Rainha Elisabeth II, que provocou um sentimento de liberdade nos países que fazem parte do Reino Unido, mas que não se identificam com o grupo por terem ideologias e cultura diversas do bloco. São principalmente os países do Caribe que hoje querem fazer o mesmo movimento que fizeram a África e a Ásia no pós Segunda Guerra.

A descolonização gerou conflitos entre os blocos de países novos, em relação às fronteiras e influência geopolítica. Até 1947, Índia e Paquistão formavam um só bloco e eram colônias inglesas. A partir da independência, os dois países foram criados e passaram a lutar pela região da Caxemira, que fica em meio a eles e passou a ser alvo de disputa entre os novos países. Conflitos, diferenças religiosas e culturais provocaram uma polêmica entre Índia, hindu e Paquistão, muçulmano. Em 1947, estourou a iminente guerra e a Caxemira foi dividida em duas partes, gerando descontentamento mútuo. Os conflitos continuaram nas décadas seguintes, insuflados pelo fundamentalismo hindu e pelo autoritarismo muçulmano. Os anos de 1965 e 1971 ficaram marcados profundamente por essas guerras. Para piorar a situação, a China comunista avançou sobre a região e o fato de todos estarem armados com ogivas nucleares deixou o conflito ainda mais intenso. Em 1972 houve o Acordo de Simla, libertando os presos políticos paquistaneses que estavam sob o domínio hindu, promoveu uma negociação pacífica em relação à Caxemira e acalmou os ânimos por alguns anos. Em 1990, os conflitos recomeçaram e continuam até o presente momento, alternando entre fases de calmaria e de ofensivas.

Outra questão histórica importante para o enredo de Os filhos da meia-noite, é Bangladesh, um povoado que fica na chamada região de Bengala, anteriormente colonizada por Portugal, que perdeu o território para o Império Britânico, compondo parte da Índia Britânica. Em 1971, após uma guerra civil, a parte oriental do Paquistão tornou-se independente, originando assim Bangladesh. Atualmente, é o sétimo país mais populoso do mundo e também um dos mais povoados. Devido à alta taxa de natalidade, é um país jovem, urbano, em decorrência do êxodo rural e também possui uma população pobre, com baixa qualidade de vida e com a maior parte das pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza. É um país subdesenvolvido, em crescimento, com base econômica rural, com destaque para a produção de papel juta, arroz, peixes e frutos do mar. É também uma região conhecida por sua produção têxtil, voltada para a exportação, utilizando-se da exploração de mão-de-obra, deixando o custo do produto final muito reduzido. Mas, tergiverso, como diz Liv Strömquist, o preço de tudo isso é alto demais: danos ambientais, alta taxa de poluição atmosférica e péssimas condições de trabalho dos bengalis. O país tem baixa infraestrutura e não recebe incentivos do governo, que funciona através do parlamentarismo. Qualquer pessoa com mais de 18 anos pode votar e, o que conta como um ponto a favor, é a participação das mulheres na política que é bastante forte e ativa. O país tem influências tanto hindus, quanto islâmicas, no quesito cultural e nas vestimentas do povo. A culinária é bastante variada, tendo influências indianas e chinesas e a sua base são o arroz e os vegetais. É um dos países que menos consome carne no mundo! O idioma original é o bengali, mas o inglês vem ganhando força por causa da exploração do turismo no local, que é muito bonito e atraente.

Para compor uma trama que coincida com todos os eventos citados acima, Rushdie coloca diversos personagens no enredo, mas, o foco principal é entre Saleem e Shiva, um garoto que nasceu no mesmo hospital e na mesma hora que ele. O parto foi feito pela enfermeira Mary, que induzida por um líder revolucionário, trocou as pulseiras dos bebês, permitindo a experiência da riqueza a Saleem que seria um menino pobre e colocando Shiva, o menino rico para viver junto com um músico pobre, seu pai. A mãe de Shiva faleceu no parto e dessa forma, Mary acreditou estar fazendo justiça, equilibrando a balança. O problema é que Saleem não foi um menino feliz e realizado em sua família rica. Foi privado da miséria junto ao seu verdadeiro pai, mas, as riquezas de sua vida material não supriram o vazio de afeto que sempre existiu em sua casa. Logo após o nascimento do filho, seu pai começou a beber devido às mudanças econômicas no país e o consequente congelamento de seus bens, mantendo casos extraconjugais frequentes e importunando a vida familiar.  Já sua mãe, ficava cada vez mais misteriosa, demonstrando ter algo a esconder o tempo todo.

Por ter o dom da clarividência, Saleem consegue acessar os sentimentos da mãe e entrar em contato por telepatia com as 581 crianças nascidas na mesma noite que ele e que sobreviveram. Fica a cargo do leitor definir se vai comprar os poderes telepáticos de Saleem ou apenas ver essa sua atitude como uma válvula de escape para o desprezo dos pais, para a falta de afeto em sua casa, pela falta de amor. O fato é que dessas conferências telepáticas, muitas coisas acontecem com Saleem e em paralelo com a Índia e o Paquistão. Amina Sinai, mãe de Saleem, é uma mulher negra, enquanto o seu pai é um homem branco. As acusações racistas aparecem com frequência nas falas dos personagens, colocando em cheque as ações de Amina, que sofre bastante quando descobrem que Saleem não é filho do casal. A convivência com um alcoólatra e as consequências econômicas da divisão da Índia e Paquistão, das guerras pela conquista da Caxemira, dos conflitos religiosos, que provocavam incêndios criminosos, retaliações de grande porte e atentados, interferiam de forma contundente na vida conjugal dos pais de Saleem.

A maior metáfora do livro pode vir da eterna rivalidade entre Shiva e Saleem, que começa na infância e se intensifica na adolescência e na idade adulta. Eles representam as lutas religiosas e culturais entre Índia e Paquistão e os eternos conflitos ideológicos pelo poder das duas nações. Além disso, a questão da fé é colocada à prova o tempo todo pelo autor/ narrador, questionando a sua confiabilidade. Saleem modifica o destino de muitas pessoas quando descobre um segredo de um amigo de seu tio e resolve desmascará-lo. Com isso, a vida de muitas pessoas se desintegra e assim ele passa a carregar esse fardo do remorso até o fim de seus dias. Essa parte do romance é muito bem explorada e me lembrou bastante o conto do Tolstói O cupom falsificado, que fala sobre as nossas responsabilidades sobre os nossos atos, que podem ter consequências funestas nas vidas alheias. O tema é muito recorrente em Os filhos da meia-noite, pois, o destino dos dois garotos se entrelaça na maternidade e a enfermeira Mary tem um papel chave em suas vidas, agindo de forma imprudente e modificando as histórias de duas famílias, provocando rompimentos, dor, sofrimento, desconfiança e outros males.

Outros dois pontos bastante abordados na obra são o bullying e o exílio. Saleem é vítima constante de bullying na escola. Ele é descrito como um garoto feio e desajeitado. A sua aparência já faz dele um alvo de gozações. Quando esse ponto é aliado à sua capacidade telepática e dessa forma ele resolve agir de acordo com as suas questões morais totalmente pessoais, que não são compartilhadas com os demais, ele passa a ser realmente uma vítima de maus-tratos na escola. Até mesmo seus professores não têm respeito por ele e, naquela época, a palmatória era permitida e por isso, Saleem apanhava bastante de seus mestres e colegas. Assim vamos percebendo que as pessoas são as mesmas desde que o mundo é mundo e os conflitos pelos quais passamos todos os dias, são também oriundos dos mesmos sentimentos mesquinhos de lutar e poder. A diferença é que atualmente, muitas ações e palavras não são mais aceitas em nossas sociedades. Entretanto, o pensamento e a cultura de valores nefastos estão além das leis de ética e moral.

A questão do exílio vem das diferenças entre os pais de Saleem. Como já mencionado antes, o racismo era presença constante no relacionamento familiar do protagonista. Quando eles descobrem que Saleem não é filho biológico deles, claro que toda a responsabilidade por isso cai sobre a mulher negra. Em um primeiro momento, a criança é exilada na casa de um de seus tios, irmão de sua mãe. Mas, o garoto através de seus poderes telepáticos e de suas investigações constantes, descobre alguns problemas ali e resolve “fazer justiça” com as próprias mãos. As consequências disso são o suicídio de seu tio e a mudança de sua família para o Paquistão, sem o seu pai em um primeiro momento. Essas questões das diferenças culturais, da falta de pertencimento, da diáspora são muito exploradas pelo autor no romance, mostrando que uma pessoa que cresceu em um ambiente cultural muito idiossincrático, fatalmente terá dificuldades em se adaptar a outras culturas e até mesmo de respeitar a forma de pensar de outros povos. Principalmente quando isso envolve conflitos étnicos, religiosos e territoriais como é o caso de Índia e Paquistão.

Durante o exílio de Saleem na casa de sua tia, há um golpe de estado que dividiu de vez o bloco formado por Índia e Paquistão, tornando-os independentes. Por ser hindu, o peso de estar ali é grande demais e a incompreensão dos fatos também. Ali, o rapaz conhece a sede de poder que domina alguns homens e o peso da solidão, quando as diferenças impedem qualquer tipo de afeto ou amizade próxima. Nas palavras de Saleem, “Paquistão e Índia nasceram banhados no sangue um do outro” e assim, sua família estava dividida: seus tios continuaram morando na Caxemira, agora Paquistão, enquanto seus pais construíram sua vida em Bombay, na Índia, sendo esta a única cultura que o jovem aprendeu e que defende com unhas e dentes. A situação de vida na Índia tornou-se insustentável, levando Ahmed Sinai, pai de Saleem ao Paquistão, em uma tentativa de recomeço. Porém, logo estourou outro conflito civil, que deu origem à Bangladesh. Durante essas guerras entre rivais, Saleem já se sentia pertencente às duas nações, afinal, vivia no Paquistão há alguns anos e assim, buscava a morte a todo custo. Ele mesmo não a encontra, porém, sua família sim. Todos são dizimados e surge um novo país.

Saleem retorna à Índia e, em suas próprias palavras “nada como a guerra para reinventar vidas” e assim, Shiva, que era pobre transforma-se em um homem poderoso e condecorado enquanto nosso protagonista vai viver em uma favela de Délhi. Muitas reviravoltas acontecem e, claro, o ponto de maior conflito entre a comunidade hindu em relação a esse livro de Rushdie chega ao ápice com o governo da primeira ministra indiana Indira Gandhi. Ela foi a primeira mulher a ocupar o cargo, em 1966 e ficou até 1984, quando foi assassinada. Gandhi é uma figura polêmica no país, pois, deixou uma herança de boas ações governamentais, entretanto, no período entre 1975 e 1977, governou o país de modo autoritário, promovendo mortes por torturas e incêndios criminosos em favelas da região de Délhi. Muitas pessoas foram perseguidas e houveram muitas prisões políticas. É claro que Saleem e Shiva estavam presentes nesse conflito como rivais.

Os filhos da meia-noite é um romance de peso e muito importante para a literatura mundial. Além de um enredo complexo e cheio de detalhes, é também um livro que explora a história da Índia de uma forma diferente e que nos leva à reflexão. Existem muitas formas de pensar esse romance e de interpretar o seu enredo, além de tantos insights provocados por Rushdie ao longo da prosa. Recomendo o livro para os leitores que não têm pressa em finalizar uma leitura. Como já apontado antes, esse é um texto de leitura lenta, para ser degustado aos poucos. Não é um texto muito palatável e muito menos um daqueles romances que se lê em duas sentadas. É preciso tempo e paciência para finalizá-lo. Porém, após a leitura, é uma história que cresce e que fica com o leitor, levando-o à reflexão e ao pensamento analítico da vida e do ser humano como um todo, tornando essa obra que se passa em um contexto específico, universal e atemporal. Um grande clássico contemporâneo para ser apreciado sempre.

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