crítica

Os irmãos Karamázov – Fiódor Dostoiévski

Último romance escrito pelo autor, considerada uma obra inacabada, pois, sabe-se que Dostoiévski tinha a intenção de dar continuidade à história de Aliócha, o seu herói Karamzoviano, Os irmãos Karamázov (Editora 34, 2008) é um texto de fôlego, onde o escritor está em sua melhor forma e desenvolve com mais convicção suas ideias e concepções de mundo.

O livro conta a história de Fiódor Pávlovitch Karamázov, pai de quatro rapazes, sendo cada um deles filho de uma mulher diferente. Esta característica do patriarca não está aqui por acaso – assim como nada neste romance está nele por acaso – e mostra a lascívia do personagem, simbolizando “a vida em toda a sua plenitude em todas as suas radicais contradições originais” (TCHIRKÓV, 2022, pág. 284). Ivan Karamázov é o filho mais velho e condensa em sua essência as ideias niilistas, onde tudo é permitido e não existe Deus. É também a representação do duplo no romance e o responsável pelas discussões mais acaloradas sobre religião, bem e mal e as dicotomias que cercam esses temas. É solitário e antissocial. “A profunda solidão e a loucura de Ivan resultam de seu processo de isolamento, da degradação de sua personalidade” (TCHIRKÓV, 2022, pág. 271).

Dimitri Karamázov é o segundo filho de Fiódor Pávlovitch e, é um dos personagens mais complexos do romance. Logo no início da obra, o conhecemos batendo em um homem na taverna, bebendo além da conta, discutindo até chegar às vias de fato com seu pai e jurando-o de morte. Dimitri está agindo assim porque é um indivíduo movido às paixões, e, neste momento, está apaixonado por Grúchenka, que também é a amada de seu pai. O velho Fiódor, viúvo, está de posse da herança materna de seus filhos e se recusa a entregar-lhes o dinheiro, alegando que precisará dele para manter sua vida de lascívia e de prazeres e, sem o dinheiro, não poderá desfrutar de tudo isso. De todos os filhos, Dimitri é o mais interessado em receber esse dinheiro e não esconde isso de ninguém.

Aleksey Karamázov, ou Aliócha, como é chamado carinhosamente ao longo do romance, é o filho mais novo e, o grande herói dessa história. Aos 19 anos, cheio de vida e de propósitos benéficos, vai morar no mosteiro, crendo ser este o único local possível a ele de praticar o bem e se desenvolver espiritualmente. Temente a Deus e praticante ativo do amor ao próximo, ele tem a alma de uma criança, sem ser pueril ou idiota, mas guarda consigo uma enorme esperança nas pessoas e no mundo como um todo, acreditando que o homem é capaz de encontrar um propósito na vida e seguir em frente, escolhendo o bem ao mal. Aliócha se entende bem com os dois irmãos, mesmo sendo tão diferente deles. Mas, como tem o dom da empatia e da simpatia, os compreende e não julga as suas escolhas ou atitudes, conquistando assim o respeito de todos, inclusive do pai.

O último filho de Fiódor Karamazov é Smierdiakóv (deriva da palavra smierdiáschaia, que significa “fedorenta”), fruto de um caso extraconjugal do patriarca com sua vizinha, enfatizando mais uma vez a característica de promiscuidade do personagem. Tanto a mãe, quanto o filho, derivam dessa característica que dá nome a eles: fedorentos. Não é apenas no aspecto físico que Dostoiévski os classifica como sujos, mas, principalmente, no aspecto psicológico dos personagens. Através de Smierdiakóv, o leitor tem um panorama de uma geração de russos simpatizantes da “europeização” do país, conhecidos como niilistas, aqueles que não se importam com os outros, rejeitam sua nação, são incapazes de qualquer manifestação de empatia ou simpatia para com os outros, são individualistas, pensam apenas em si mesmo e sentem uma vontade enorme de emergir, mesmo que essa ascensão seja às custas de outras pessoas.

Smierdiakóv não foi reconhecido pelo pai. Vivia na propriedade da família Karamázov, como cozinheiro e por isso guardava bastante rancor e ódio aos seus irmãos por não ter os mesmos privilégios que eles. Motivado pela ganância e pelo desejo de vingança, aproximou-se de Ivan, de Mítia (Dimitri) e do pai, ganhando a confiança dos três e provocando-lhes a agir uns contra os outros, inventando narrativas falsas e insuflando a maldade nas mentes perturbadas desses personagens.

A história dessa família tão disfuncional, sem amor, cheia de mágoas e de trevas só poderia terminar mal. Em uma noite muito movimentada, Fiódor Karamázov é assassinado com uma pancada contundente na cabeça e os suspeitos são poucos, mas, Dostoiévski confunde o leitor até a metade do segundo volume do livro, quando o autor do homicídio nos é revelado e, passamos a acompanhar o desfecho de todas as histórias desse romance filosófico e existencial, que encerra a carreira proficiente de Dostoiévski.

Além do núcleo principal de personagens, temos alguns outros que merecem destaque. A começar pelo stárietz Zossima, mentor de Aliócha no mosteiro. Zossima é visto pela população local como uma pessoa mística, quase santificado. Aguardam dele milagres, uma vida transcendental e cheia de pureza. No entanto, Zossima é apenas um benfeitor da comunidade, um pregador, um religioso. Tem as suas convicções, em contraponto à ideia da não-existência de Deus, pregada por Ivan. Zossima baseia a sua crença e as suas escolhas no Livro de Jó, do Antigo Testamento. Para ele, foi um grande exemplo de vida e de fé. Assim, o religioso segue a sua caminhada, aconselhando e ajudando as pessoas que recorrem a ele, dentro das suas possibilidades.

Outra personagem central da história é Caterina Ivánovna, que no começo da trama é noiva de Mítia, que pretende romper o compromisso com ela para fugir com Grúchenka. Caterina é uma incógnita para o leitor até o final do romance, quando a sua personalidade começa a se revelar melhor. Apesar de generosa, talvez por uma “obrigação” em fazer o bem, ela também é tomada por uma repulsa e por um ódio das pessoas, que chega a ser incontrolável. “A generosidade e a nobreza de Caterina Ivánovna (…) fundamenta-se numa desvairada autoafirmação. A elevação moral dela é inseparável de seu rancor inexaurível” (TCHIRKÓV, 2022, pág. 260).

Grúchenka também é uma personagem importante para o desenvolvimento da ação. Em contraponto com Caterina, ela tem origem humilde, se prostitui por falta de opção, mas no fundo, deseja um amor verdadeiro, um homem que a ame e a respeite. Apesar de ser o pivô das brigas entre pai e filho e de outras desavenças, Grúchenka tem um bom coração e uma alma nobre.

Já a Sra. Khokhlakova e sua filha Lise, são duas mulheres cheias de camadas, complexas, que representam no romance a degradação da nobreza russa. Elas são vizinhas dos Karamázov, estão perdendo o poder aquisitivo, Lise é doente e pede Aliócha em casamento, quando este deixa o mosteiro. Ao mesmo tempo em que Lise condena as ações da mãe, repete as suas idiossincrasias, como se nela não fizesse mal, apenas na mãe. Essa característica sociopatológica fica evidente em muitas cenas protagonizadas pelas duas. “Na madame Khokhlakova são expressivamente representadas a futilidade e a vaidade, a extrema inépcia da nobreza provinciana, da ‘sociedade’ das damas da Rússia pós-reformas” (TCHIRKÓV, 2022, pág. 239). Em termos sociais, o desequilíbrio de Lise, a afetação e a histeria são muito significativos como marcas da decadência social, do determinismo.

As influências do capitalismo se mostram em personagens como Smierdiakóv e também no jornalista/ comerciante Rakítin. Típico puxa-saco, ele se aproxima das pessoas que lhe convém, sempre com um discurso que as agrade, mas, por trás de toda essa gentileza, existe um desejo enorme de obter algo dessas pessoas. As marcas do empreendimento capitalista estão neste personagem, que, tem uma função determinante no futuro dos irmãos Karamázov, até porque, ele não possui nenhuma moral ou caráter para ser justo. Sua busca constante e explícita por uma vantagem pessoal, o cinismo, a presunção, a indecência moral e a falta de escrúpulos são as marcas de Rakítin, que aparece em cenas importantes do romance.

Porém, apesar de todas essas criaturas horrendas, criadas por Dostoiévski, há também uma história dentro da trama principal, que se desenvolve através de Aliócha e de Mítia. No começo do romance, quando Mítia agride um homem na taverna, adentramos o mundo desse funcionário público, que é pai de família, tem uma esposa doente, uma filha deficiente e o seu filho caçula, que protagonizará essa subtrama da narrativa. O seu nome é Iliúcha e, para quem já leu o romance húngaro Os meninos da Rua Paulo, ele lembra muito o herói Ernesto Nemecsek. Após muito sofrimento, essa família vê o seu filho cercado de amigos, como se fosse uma personificação da vida, da esperança e das boas perspectivas de futuro.

Aliócha, tentando ajudar o irmão a se redimir de seus erros, se aproxima dessa família e faz amizade com todos eles, tornando-se uma espécie de benfeitor, de sacerdote para eles, no sentido de trazer esperança e as respostas que eles não têm para as coisas da vida. É uma história bonita e triste, mas bastante significativa para o romance e o seu desfecho, que junto ao destino de Mítia servem de condição para a redenção, o perdão e o amor ao próximo. O capítulo final do romance tem a função de deixar essa mensagem de que ainda há esperança, de que apesar de tudo, o homem é capaz de gerar o bem e de fazer o bem. É a condição para a revelação de todas as potencialidades da vida.

Os irmãos Karamázov é uma história de morte, de autonegação, de animosidade, de destruição dos laços familiares. É também uma história das paixões, que dão força à vida, que “geram dentro de si mesmas a sua contradição, a sua negação, o amor-ódio, o amor-animosidade” (TCHIRKÓV, 2022, pág. 286). Porém, a intenção de Dostoiévski ao escrever um romance tão furioso como este é discutir os dois polos da vida russa: a consciência social e o niilismo. Em uma fala do stárietz Zossima, ele diz que “o paraíso está oculto em cada um de nós, agora mesmo está oculto aqui dentro de mim, e se amanhã eu quiser ele começará efetivamente para mim e já para o resto de minha vida” (DOSTOIÉVSKI, 2008, pág. 414). Desta forma, o autor mostra que apesar de todas as intempéries da vida, todas as condições negativas que podem refletir no íntimo dos homens, ainda existe a opção de viver bem, de ser uma pessoa melhor e de assumir a sua consciência social, compreendendo a corresponsabilidade de todos pelos crimes dos outros e a consciência de cada um pela própria culpa. Só assim seremos uma sociedade justa e pacífica.

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