crítica

Os mandarins – Simone de Beauvoir

Em seu vídeo sobre os favoritos do ano, a Natasha Hennemann do Canal Literário Redemunhando disse que “os livros da vida são aqueles que durante a leitura já os sabemos favoritos”. Sempre pensei dessa forma e costumo ir mais além: para mim, um livro me ganha pelo título, pelo autor, pela capa e principalmente, pelos primeiros capítulos. Após os 15, 20 por cento da leitura já sei se vou favoritar ou não. Conjecturas à parte, estou aqui hoje com a missão impossível de falar sobre um dos melhores romances que já li na vida, Os mandarins da Simone de Beauvoir (Nova Fronteira, 2017), que se encaixa perfeitamente na descrição acima.

Definir o seu enredo é praticamente impossível, mas vamos tentar: acompanhamos ao longo de 736 páginas um grupo de amigos em Paris a partir do dia D, da desocupação da França pelos nazistas e o começo de uma nova era mundial. Essas pessoas encontram-se feridas, perdidas, desiludidas, sofridas, mas ao mesmo tempo guardam em si um desejo enorme de recomeçar e uma esperança de que dias melhores virão. Seguimos com eles por vários anos, passando pela reconstrução da Europa, a ascensão soviética, a guerra fria e a descoberta dos campos de concentração da Sibéria, criados por Stalin. São muitos sentimentos e acontecimentos para serem vividos por esses protagonistas ao longo do romance, mas a autora dá conta de tudo e nos leva a muitas reflexões sobre nós mesmos e sobre o mundo que nos cerca.

Apresentando um pouco os personagens da obra, começando por Anne, que é considerada por alguns biógrafos e críticos como um alter-ego de Simone, é uma das protagonistas que conduzem o romance. Temos acesso ao seu pensamento através do discurso indireto livre e de seus sentimentos mais profundos. A personagem é uma psiquiatra que tenta ajudar as pessoas nesse período difícil, analisando seus comportamentos e refletindo sobre eles ao longo da trama. É uma mulher por volta dos 40 anos, casada com um homem mais velho, mãe de uma jovem de18 anos, que perdeu o seu grande amor na guerra, por fazer parte da resistência francesa.

Através de Anne, Simone discute temas importantes como a maternidade, as relações conjugais, a psicanálise, o envelhecimento, o amor e principalmente a dicotomia entre seguir as regras ou se entregar à vida. Anne é uma mulher bastante regrada, que segundo sua filha, é artificial e não sabe transmitir afetos ou mesmo ser uma pessoa de verdade. Ainda neste núcleo familiar, temos Nadine, a filha do casal Anne e Robert, que perdeu o namorado na guerra, começa a sua trajetória de forma muito imatura, rebelde e intensa ao extremo. Ela procura prazeres efêmeros, não tem nenhum problema com questões sexuais, é um espírito livre, que representa a juventude, mas ao mesmo tempo é engajada politicamente, deseja resolver sozinha todos os conflitos do mundo, fazer justiça com as próprias mãos, tem sede de ajudar ao próximo e se revolta com as diferenças sociais e econômicas do país e do mundo.

É muito marcante o posicionamento dessa personagem porque ele nos remete à nossa juventude, à nossa vontade de mudar o mundo que aos poucos vai desaparecendo à medida em que envelhecemos e somos decepcionados o tempo todo com a política, com as injustiças do mundo e com as escolhas que temos que fazer o tempo todo. Nas primeiras páginas do romance, Nadine faz uma observação que nunca vou esquecer, de tão reflexiva que é: ela está viajando por Portugal e observa as luzes da cidade, achando-as muito belas e impressionantes. O seu acompanhante lhe diz que essas luzes são na verdade um subúrbio, onde existem centenas de pessoas passando fome. Imediatamente ela repudia essas luzes e faz um paradoxo entre a beleza aparente dos grandes centros urbanos e a sua miséria que fica escondida nos submundos. Começa assim uma nova fase para a personagem.

Seu pai, Robert, é um romancista e ensaísta muito engajado politicamente falando. Entretanto, não compactua com todos os dogmas do partido comunista, sendo contra em alguns pontos, mas a favor de um governo de esquerda na França. Lembrando que neste período o país era comandado por De Gaulle, um general que liderou as Forças Francesas Livres durante a Segunda Guerra e reescreveu a constituição do país, que ficou conhecida como Quinta Constituição. Foi um líder popular, mas não tinha o apoio de todos os franceses. Assim, esse contexto para o personagem de Robert é muito importante: ele ficava dividido entre apoiar De Gaulle e se manter fiel ao comunismo, mesmo quando estourou o segredo dos campos de concentração soviéticos. Para os críticos e biógrafos, Robert seria uma representação de Sartre no romance.

Robert é marcado pelos diálogos políticos e filosóficos contidos na prosa. De acordo com uma amiga da família, ele precisa apenas de uma mesa, papel e caneta para escrever que estará feliz e viverá bem. É um personagem interessante, que conduz o leitor à reflexão, ponderando os dois lados da moeda e argumentando de forma inteligente para nos fazer pensar e tentar decidir o que cada um deve fazer em situações que não se pode ficar em cima do muro.

Henri é o melhor amigo de Robert e, mesmo sem saber a opinião dos críticos e biógrafos, o identifiquei muito com o escritor e ensaísta Albert Camus, que como sabemos, foi muito amigo de Sartre e Simone, porém, devido ao seu caráter pacifista, foi mal interpretado por muitas pessoas da época e isso provocou o rompimento do escritor com Sartre. Henri tem a mesma essência de Camus: acredita que deve dizer sempre aquilo que pensa, procura agir com hombridade e retidão, tem muitos casos amorosos, é jornalista investigativo e não deixa de denunciar aquilo que considera errado, grave e que deve ser de conhecimento da população. Ele não tem a menor vontade de ceder a nenhum partido e defende uma imprensa livre, onde possa escrever seus artigos em paz e do jeito que quiser, sem medir suas palavras.

Essas ações custaram um preço caro a Henri, assim como para Camus. Para quem conhece a história dele e já leu a sua obra, faz a ligação imediata entre o personagem e o escritor. No início da narrativa, Henri mantém um relacionamento estável com Paule, uma mulher instável, obcecada pelo namorado, que abre mão da sua própria existência para viver por ele e tenta decidir as suas ações e até mesmo o enredo de seus romances. Situação que nos remete imediatamente à vida pessoal de Camus: sua esposa agia da mesma maneira. Há um momento em que o personagem escreve uma peça de teatro ambivalente, que é financiada por uma mulher de caráter dúbio e que exige o protagonismo de sua filha na adaptação que é uma atriz sem sucesso na cidade. Obviamente, Henri tem um caso com essa moça, mais um ponto em comum com a vida de Albert Camus.

Acompanhamos também alguns outros personagens secundários, mas que têm um grande peso na obra. Eles são os articuladores, os colegas de trabalho de Henri, o pessoal do partido, os aliados e de todos, quem se destaca é Lambert, um homem jovem, que tem uma relação conturbada com o pai, que apoiou os nazistas e denunciou judeus para serem enviados aos campos de concentração. Após o fim da Segunda Guerra, os apoiadores de Hitler e os colaboradores do nazismo foram julgados e condenados ao cumprimento de penas por suas ações contra os judeus. No romance, Simone apresenta esses fatos através de três personagens: Lambert, Sezanec e Lucie. O primeiro através do pai, o segundo sendo ele mesmo delator de judeus e a terceira “prestando serviços sexuais” aos soldados alemães e vendendo a própria filha a eles.

São muitos temas abordados pela autora através de diálogos afiados, filosóficos e políticos. Utilizando-se das técnicas do romance, Simone constrói um enredo forte em um contexto histórico complexo, cheio de referências e de acontecimentos reais. Através do discurso indireto livre, conhecemos o íntimo de Anne e de Henri, os dois personagens mais desenvolvidos e complexos desta obra. A partir da metade do livro, conhecemos um personagem novo, que será o grande amor de Anne. Ela e Robert possuem um relacionamento aberto e todas essas questões são trabalhadas ao longo do romance, mostrando várias facetas de um mesmo indivíduo. Há discussões muito legais sobre gênero, classe, carpe diem, amor e sua importância na vida das pessoas, funções da arte: arte pela arte ou engajamento político? Não existe a possibilidade de finalizar essa obra sem questionar toda a nossa existência e repensar sobre quem nós somos ou queremos ser.

Outro aspecto muito importante em Os Mandarins é o fato de que a autora pontua de forma reflexiva e ao mesmo tempo simples a divisão que se deu entre Estados Unidos e Rússia – na época União Soviética – e a rixa que persiste até os dias atuais. Muitos de nós não conseguimos mensurar essa divisão e as consequências da Guerra Fria por falta de vivências ou mesmo de interesse. Simone contextualiza esse período na vida de cidadãos comuns, levando o leitor a um aprofundamento sobre o assunto do ponto de vista filosófico e de um país que estava de fora dessa problemática, mas que precisava se posicionar. Ver a questão com um olhar arguto e questionador auxilia no processo de compreensão das vicissitudes de uma época conturbada e que reverbera em nós ainda nos dias atuais.

Achei muito bonita a ênfase que o romance coloca sobre o personagem de Henri porque para mim, Simone explicou sob uma outra ótica o pensamento de Camus, que é muito complexo e pouco entendido. Ela o colocou como uma pessoa honrada, ética, mas também humana, com seus defeitos, idiossincrasias e dificuldades de relacionamento com os outros. Por outro lado, ela não engrandeceu o personagem que seria Sartre. Colocou-o como foi: um grande pensador do seu tempo, um filósofo que se sente vivo enquanto está pensando e que não precisa de muitas coisas para se sentir bem e realizado.

Recomendo Os Mandarins para quem gosta de filosofia, de política e de livros densos e reflexivos. É certamente um livro para releituras e a cada uma delas, o leitor encontrará um livro novo, inédito. Essa é a grandeza de romances filosóficos que tanto amo: nunca se esgotam, sempre trazem alguma novidade, algo que passou despercebido na primeira leitura ou mesmo uma nova abordagem, considerando o quanto mudamos ao longo da vida.

Compre o livro na Amazon: https://amzn.to/36g7pXM

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *