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Os miseráveis e o preço por roubar um pedaço de pão

Algumas histórias, mesmo sem nunca termos contato com elas, são universais e estão presentes no imaginário popular. Independente da sua idade, certamente você já ouviu falar de um homem que foi condenado a 5 anos de prisão por roubar um pedaço de pão. Você pode não saber o nome desse homem e nem a qual texto ele pertence, também não compreende bem se isso aconteceu de verdade, se é uma lenda ou um romance do século XIX. Mas, você já ouviu essa história. Estamos falando sobre Jean Valjean, um ex-forçado francês, aquele que roubou um pedaço de pão para alimentar os sobrinhos órfãos de pai.

Também estamos falando daquele que roubou um pedaço de pão para outras pessoas e não para si próprio, alguém que claramente possui algum tipo de ética interna, ou o que costumamos chamar de princípios. Mas, por ironia do destino ou por vivermos em uma sociedade fútil, ligada a valores econômicos e que despreza todos aqueles que não fazem parte de uma elite, os valores éticos e morais desse homem sofreram algum tipo de abalo quando, ao se ver livre das galés, continuou sendo apontado como um pária, alguém que não merece conviver junto aos bons e que deveria permanecer à margem.

Quando colocamos as coisas assim, parece que estamos falando de acontecimentos atuais. Ano passado, um juiz que tem um salário de mais de R$ 30.000,00 mensais, condenou uma mulher à prisão por ter roubado um pacote de miojo no supermercado de sua cidade no interior de São Paulo para dar de comer aos filhos. Ela ainda deixou um bilhete dizendo que quando pudesse, voltaria para pagar por esse produto. Ela pode ser uma representação de Jean Valjean do século XXI, mostrando que os problemas sociais denunciados por Victor Hugo em seu clássico Os miseráveis ainda são muito pontuais e levam pessoas boas a pagar uma pena exagerada e assim, as excluindo da sociedade.

É uma verdadeira quimera acreditar que um ex-presidiário tanto no século XIX, quanto no século XXI será reintegrado na sociedade e que terá uma vida digna após cumprir a sua pena. Assim como Jean Valjean, que roubou um pedaço de pão, essas pessoas acabam reincidindo em seus crimes após tentar oportunidades novas fora da prisão e serem rechaçadas por todos os lados. Dessa forma, essas pessoas voltam para as cadeias, galés, serviços forçados…. Seus valores aos poucos vão se perdendo, vão se abalando e sua crença na sociedade termina, levando-os a se tornarem pessoas más.

Para sua sorte, Jean Valjean encontrou o Bispo Digne, Bienvenu. Esse homem o acolheu e mesmo após ser roubado pelo ex-forçado, não o entrega à polícia. Bastou que uma única pessoa o estendesse a mão e o aceitasse para que seus valores éticos e morais se reconstituíssem e o homem que roubou um pedaço de pão se transformou em um senhor respeitável, produtivo, benevolente, capaz de ajudar e empregar os fracos e oprimidos de sua cidade, tornando-se prefeito. Claro que para tudo isso, uma nova identidade precisou ser providenciada. O seu verdadeiro nome, aquele que carrega desde o nascimento está manchado para sempre. E eu volto a perguntar: quantas pessoas atualmente vivem clandestinamente e com falsas identidades? Inúmeras e por motivos diversos. No romance de Victor Hugo, estamos trabalhando com a hipótese de um herói, mas que facilmente podemos encontrar na vida real: muitas pessoas realmente se regeneram e se modificam por razões diferentes.

Após roubar um pedaço de pão, cumprir uma pena de 19 anos, roubar um Bispo, ser perdoado por ele, se transformar em um senhor respeitável, empregar pessoas em situação de vulnerabilidade, o caminho de Jean Valjean se cruza com o de Fantine, uma das personagens mais sofridas da literatura e que, infelizmente, não tem nada de surreal, muito ao contrário, ela pode ser encontrada em cada esquina das grandes cidades brasileiras e do mundo inteiro. Fantine era uma moça simples, trabalhava para se sustentar. Era bonita, tinha uma vida decente e cheia de sonhos. Seu grande “pecado” foi se apaixonar por um “boy lixo” e se entregar a ele, tornando-se mãe solteira.

A partir desse acontecimento, seu “suposto” namorado se retirou à francesa, deixando-a sozinha para se virar com as responsabilidades da maternidade. Se hoje em dia ser mãe solteira ainda é um tabu e um problema para as mulheres, em 1830 era um pouco pior. Há o preconceito, a religião, as questões sociais e principalmente os julgamentos das línguas viperinas que condenam mais que qualquer tribunal. Assim, Fantine chegou ao purgatório. Deu à luz à Cosette, que passou a ser o seu mundo. Enquanto pode, cuidou da criança com amor, lhe deu tudo de si, trabalhou duro e sustentou a filha e a si mesma. Porém, como todos os leitores da classe trabalhadora vão entender bem, ela precisou de móveis e para tê-los, fez dívidas. Naquela época, ter dívidas era motivo para prisão. E assim perdeu Cosette, sendo obrigada a entrega-la a um taberneiro que representa tudo de ruim que uma sociedade pode ter.

Não vou me alongar aqui na degradação de Fantine porque creio que ela também vive no imaginário popular, principalmente depois da adaptação do romance em um musical maravilhoso, onde a Anne Hathaway imortalizou essa personagem icônica. Mas, o que ela sofre após a perda de Cosette é de cortar o coração e nos leva a uma reflexão muito profunda sobre a nossa maldade. E não digo isso excluindo ninguém. Nós temos um péssimo hábito que é o pré-julgamento. Estamos sempre, como diz o ditado popular, sentados no nosso próprio rabo e apontando o dos outros. Precisamos pensar sobre essa nossa postura e parar o mais rápido possível de fazer isso, pois somos todos responsáveis por desgraças como a de Fantine. E digo mais: se você tem preguiça de ler todo o romance de Victor Hugo, leia somente o livro Fantine. Ele já é uma aula sobre causa e consequência dos pré-julgamentos e dos “comentários sem maldade”, ou das conhecidas “línguas de trapo” que não conseguem permanecer dentro da boca.

Jean Valjean, o homem que roubou um pedaço de pão resolve devolver a honra de Fantine resgatando Cosette e cuidando dela como uma filha. Para tanto ele precisou enfrentar Thenardier, um homem sem escrúpulos, casado com uma igual, que juntos aprontam todas as trapaças e extorquem as pessoas de bem como Fantine. Além disso, eles exploram a mão de obra infantil através de Cosette, algo que infelizmente ainda faz parte do nosso mundo. A família Thenardier é uma das representantes da maldade humana, da falta de moral, de amor e de escrúpulos. Mas, claro, Jean Valjean consegue retirar a criança da taverna e foge com ela, dando início a grandes aventuras ao longo do romance.

A passagem de Jean Valjean e de Cosette por Paris é uma oportunidade que o autor criou para mostrar ao leitor o que acontecia naquela cidade no século XIX. Nós criamos no nosso imaginário uma Paris glamorosa, cheia de belezas, de encantamento e também a conhecemos como “cidade luz”, uma referência tanto à sua luminosidade física quanto intelectual. Mas, existem os submundos de Paris que são fartamente apresentados por Victor Hugo em Os miseráveis. Passeamos pelos esgotos da cidade e aprendemos muito sobre sua história, como tudo aquilo foi construído. Também ficamos sabendo como o Elefante da Bastilha, construído por ordens de Napoleão se transformou em um lar improvisado para as crianças de rua, mostrando todo esse não lugar, essa degradação que acompanha o progresso e que na verdade, é o preço do progresso.

Outros personagens vão surgindo ao longo da história do homem que roubou um pedaço de pão. Muitos caminhos se cruzam e através desses personagens o escritor faz um encadeamento da narrativa com as questões sociais, políticas e históricas. Ler Os miseráveis é ter uma aula de história da França, começando pela Batalha de Waterloo, narrada pelo escritor de forma extensa e detalhada. Passando pelos movimentos estudantis em 1848, através de Marius e seus amigos, além de denunciar as injustiças e as mazelas sociais daquela época, entremeando esse contexto à trajetória dos personagens. É um romance esplêndido, encantador e que faz um diálogo com o nosso tempo, pois, os problemas denunciados por Victor Hugo há dois séculos ainda fazem parte da nossa sociedade.

Tanto Jean Valjean, o homem que roubou um pedaço de pão, quanto Marius, o estudante revolucionário e Javert, o policial à moda de outro personagem que li recentemente, também francês, O Jean-Baptiste Clemance, do livro A queda, escrito por Albert Camus, travam batalhas internas épicas com suas consciências. A construção desses monólogos internos é fantástica! O leitor termina por se questionar sobre todos os temas que o autor coloca nesses diálogos do eu consigo mesmo. A ética, a moral, os princípios cristãos estão sempre em voga neste romance.

Marius passa toda a obra em guerra com o seu avô que é contrário à revolução. Após descobrir alguns ardis criados por ele, sai de casa com a roupa do corpo e vai tentar a vida longe de todos os luxos pelos quais sempre foi cercado. É uma bela trajetória de aprendizado e de crescimento, que envolve todas as questões inerentes à imaturidade juvenil. Javert é o algoz do homem que roubou um pedaço de pão. Ele não possui maturidade emocional e por isso age de acordo com as regras e com a lei, sendo incapaz de refletir sobre a justiça social ou sobre as injustiças praticadas pelos tribunais. É muito severo, não perdoa nenhum tipo de crime, por menor que seja ou mesmo aqueles cercados de motivações justas. Assim, o próprio policial torna-se responsável por muitas desgraças que poderiam ser evitadas, se ele fosse um pouco mais maleável e condescendente.

Não estou defendendo marginais aqui. Que isso fique claro. Mas estou, assim como Victor Hugo, questionando o nosso sistema prisional e os nossos pesos e medidas. Estou também refletindo sobre uma obra secular que poderia muito bem se passar em 2022, dadas as questões sociais que aborda e que ainda não foram resolvidas. Nós evoluímos em tecnologia, em arquitetura, em arte, profissionalmente e economicamente. Nos libertamos dos grilhões das religiões ortodoxas e dos antigos paradigmas. Mas ainda temos uma grande dificuldade em enxergar o outro, em nos colocar no lugar do outro e principalmente em não julgar os outros. Também não nos libertamos ainda do nosso apego à matéria, ao dinheiro e a tudo o que ele pode comprar.

Dessa forma, somos responsáveis por aqueles que roubam um pedaço de pão, por aqueles que se prostituem por falta de opção, pelas mãos-de-obra exploradas todos os dias, por aqueles que vivem nos esgotos das grandes cidades, por aqueles que se drogam e que morrem ao relento. Não são ações isoladas que vão resolver esses problemas, mas sim ações pontuais, governamentais e justas, com foco nas pessoas e não ações hedonistas e utilitárias. Enquanto existir fome, existirá alguém para roubar um pedaço de pão ou um pacote de miojo. Enquanto existir miséria, haverá alguém vendendo seus dentes e cabelos junto com a sua dignidade. Enquanto houver quem pague, quem compre, haverá prostituição tanto de adultos, quanto a terrível prostituição infantil, e também haverá jovens vendendo packs na internet. Enquanto houver injustiças sociais, parafraseando Victor Hugo, livros e ensaios como estes não serão inúteis.

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