crítica

Os viajantes – Regina Porter

Neste belo romance de estreia da autora norte-americana Regina Porter, acompanhamos duas famílias que se unem em um determinado momento da trama: a família Vincent, composta por James (o cara), Sigrid, primeira esposa de James e Rufus, filho do casal e pela família Christie, composta pelo casal Agnes e Eddie, que têm duas filhas, Claudia e Beverly. A história começa a ser contada quando Claudia e Rufus já são casados e têm dois filhos birraciais: Winona e Elijah, que são gêmeos. James é atualmente casado com Adele, uma mulher de origem judia que tem um passado muito triste e por isso sofre com o alcoolismo. Sigrid se mudou para Los Angeles e segue sua carreira como diretora de cinema, estando desde o divórcio afastada da família.

Parece confuso, mas aos poucos a trama ganha forma e entendemos tudo o que está acontecendo com essas personagens tão especiais e cativantes à sua maneira. O mais importante a saber de início é que, a família Vincent é branca, descendente de irlandeses e que a família Christie é negra dos Estados Unidos. Digo isso porque para eles essa acaba sendo uma questão: eles desejam saber a sua origem, de que parte da África vieram os seus ascendentes e quem são eles. Na verdade, esse é um dos muitos temas abordados por Porter nesse romance, que vai conduzindo o leitor através de uma viagem pelo país aos episódios cotidianos de racismo e de discriminação que sofrem constantemente.

Já nas primeiras páginas do romance o leitor pode perceber como a autora vai abordar esses episódios de racismo:

Rufus havia se casado com uma mulher negra chamada Claudia Christie, o que significava que os netos de James, Elijah e Winona, eram multirraciais, birraciais, metade negros (…) Ainda assim, quando James andava nas ruas com Elijah e Winona, seus sentimentos eram tão mesclados quanto a cor da pele deles. ‘Eles são tão maravilhosos’, era o que as pessoas diziam. Mas não se parecem comigo, confessou James a Adele” (PORTER, 2020, pág. 18)

Esse comentário de James prepara o leitor para o que vem a seguir, que é a história de Agnes e de como ela perdeu o grande amor de sua vida. É um episódio bastante pesado, que mostra como as pessoas negras eram tratadas nos Estados Unidos no início do século XX, quando a guerra civil havia terminado, mas deixado suas marcas e consequências. Apesar de terem perdido a guerra, os estados do Sul continuaram segregando a população. Dessa forma, havia banheiros, restaurantes, bares, hospitais, escolas e tudo o mais que imaginarmos separados para brancos e negros. É o que ficou conhecido como Leis Jim Crow e que eram controladas pelo Green Book, um guia que indicava aos leigos quais restaurantes e hotéis do Sul recebiam pessoas negras. Falar sobre isso é bastante complicado porque é horrível e além disso, essa é uma mácula no país, que não pode ser apagada e que provoca consequências ruins ainda nos dias atuais.

Agnes, após passar por uma situação traumática, se casa com Eddie, que é enviado imediatamente para o Vietnã. Lá ele tem de aprender a sobreviver não apenas à guerra, como também ao racismo, ao preconceito. Só depois de um ato heroico é que ele recebe permissão para voltar aos Estados Unidos e seguir sua vida. Porém, o pós-guerra também tem as suas peculiaridades: os ex-combatentes[A1]  não têm as mesmas oportunidades de trabalho que os outros. São excluídos, marginalizados porque as pessoas acham que eles são “perigosos”, não compreendem muito bem o que é o estresse pós-traumático e principalmente que ele pode ser tratado. Neste ponto, conhecemos Jeb Applewood, primo de Eddie, que também é veterano de guerra. Jeb recebe uma oferta de trabalho em uma empresa de mudanças e é enviado junto a um colega para Sul, munidos do Green Book. Seu companheiro de viagem não entende muito bem a lógica daquele guia e nem as recusas de Jeb em parar em qualquer hotel, pensão, posto de gasolina…

O colega de viagem de Jeb só vai compreender o racismo após uma situação acachapante pela qual eles vão passar em uma lanchonete e só aí ele entenderá o porquê do Green Book. Outro membro da família Applewood, Ruben também vivencia o racismo e tenta proteger seus filhos de toda a maldade que o ser humano é capaz de fazer. Oficial da Marinha, casado com Charlotte e pai de dois filhos, mudam-se para uma casa no Condado de Buckner na Geórgia. Seus vizinhos são um casal bastante disfuncional, composto por Charles e Barbara Camphor e seu filho Hank. Charles é um banqueiro rico, infeliz, cheio de preconceitos arraigados. Seu casamento não está indo bem e suas relações com o filho são péssimas. Barbara é uma médica bem-sucedida da Cruz Vermelha es está empenhada em pesquisar e descobrir uma possibilidade de cura para o vírus da Aids. As relações entre as duas famílias de vizinhos serão bastante conturbadas e o racismo velado fará parte delas. As atitudes de Charles são terríveis e enchem o seu filho Hank de vergonha e constrangimento.

A relação entre a família Camphor e a família Applewood mostram que mesmo quando uma pessoa negra tem dinheiro e prestígio profissional ela ainda é subjugada e tratada de forma preconceituosa pelos outros devido à cor da sua pele. É notório que Ruben tem condições de viver no condomínio onde comprou sua casa, mas para Charles, eles não deveriam morar ali, pois são incômodos. Esse é um dos episódios de racismo estrutural que parecem incrustados nas pessoas e que as impedem de ver o óbvio, de respeitar o próximo e acabar com a segregação. O fim do romance se dá quando Barack Obama é eleito presidente dos Estados Unidos, mostrando o início de uma nova era, talvez de uma mudança de paradigmas e um novo tempo para as pessoas que foram tão rechaçadas em sua própria terra, impedidas de ter o mínimo de paz para viver.

Agnes esposa de Eddie, não aceitou o destino implacável sobre ela de ser professora, na época, uma das únicas profissões possíveis para mulheres. Tornou-se funcionária pública em gestão de projetos urbanísticos e se deu bem profissionalmente. O grande conflito da personagem é lidar com o seu passado e com as marcas que ele deixou em sua vida. Agnes tem uma amiga que morou em sua casa na adolescência, Eloise. Ela também é uma personagem disruptiva, que quebra paradigmas e regras. Sua maior influência é Bessie Coleman, a primeira mulher afro-americana a ganhar a licença internacional de pilota. Bessie precisou se qualificar na Alemanha e na França porque nos Estados Unidos esse tipo de estudo era proibido para pessoas negras.

Eloise, assim como Bessie, saiu do país e foi morar na Alemanha. Um de seus maiores talentos é a facilidade que tem em aprender idiomas. Quando jovem, aprendeu o húngaro, considerado por muitos especialistas como uma das línguas mais difíceis de aprender. Assim, ela construiu sua vida em Berlim, trabalhando e vivendo segundo suas regras. Eloise é gay assumida, namorou Agnes na juventude, mas não foi o seu grande amor. Para a época, Eloise era uma aberração para a população convencional: uma mulher negra, lésbica, que gostava de se vestir com calças de alfaiataria, camisas, suspensórios e chapéu coco. Mas para ela estava tudo bem: o mais importante é a autenticidade e a superação dos problemas de infância, vindos de uma situação que envolve mais o macro ambiente que o microcosmo familiar. De acordo com Eloise, quem não está satisfeito, “que beije o seu traseiro preto”.

Junto com a personagem acompanhamos também a queda do Muro de Berlim e suas consequências para quem morava lá. É interessante observar o ponto de vista da autora, porque ela não vai se aprofundar no tema, mas o fato histórico está presente e impacta a vida de Eloise. Todo o livro é composto de fatos reais, socioambientais, econômicos e políticos que terão algum tipo de relação com a vida íntima dos personagens. Os acontecimentos históricos impactam e muitas vezes definem o destino dos protagonistas. Porém, para os leitores que não possuem algum conhecimento prévio dos temas e fatos históricos abordados por Porter, não compreenderão a sua grandiosidade e nem a forma como eles estão relacionados ao destino dos personagens.

Além do contexto histórico, a autora também nos brinda com um enredo baseado na literatura de Joyce e de Shakespeare. As referências aos dois escritores e a outros também estão presentes ao longo de todo o romance. Rufus é especialista na obra de James Joyce, amparando a temática das origens e da importância de se aproximar de sua cultura. Já Eddie Christie é muito fã de uma peça chamada Rosencrantz e Guildenstern estão mortos, de Tom Stoppard, uma comédia existencial, narrada a partir da perspectiva dos malfadados companheiros de Hamlet, que dão título à peça, durante uma viagem de navio para a Inglaterra. Essa peça é encenada e lida por ele e pelas filhas ao longo de toda a história, proporcionando ao leitor momentos de alívio cômico em meio a tantas desventuras.

Os viajantes (Companhia das Letras, 2020) é um excelente livro, com uma trama muito bem amarrada, poderosa e cheia de idiossincrasias que fazem dela única e especial. Não é um livro leve, ao contrário é uma história sobre dores, aflições, tragédias e desencontros. Porém, ao mesmo tempo em que fala sobre tudo isso, ela é cotidiana, no sentido de contar episódios do dia-a-dia de pessoas comuns, pessoas que existem e que sobrevivem aos grandes eventos históricos, munidas de esperanças e de fé em um futuro melhor. Minha única ressalva a esse livro é sobre a voz narrativa, que é igual para todos os personagens. Mas por se tratar de uma história tão boa e tão rica, essa questão estética passa a ser um mero detalhe. Recomendo fortemente esse livro a todos os leitores.


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