Quando imaginamos os integrantes da conhecida “Geração Perdida”, os imaginamos de um jeito bem diferente do que eles foram. Na verdade, criamos um mito um tanto heroico dessas pessoas, como se fossem bem-sucedidas, felizes o tempo todo, que ganhassem dinheiro e reconhecimento muito rápido e até mesmo que escreviam com uma facilidade enorme, sendo aclamadas pelo público e pela crítica e que a vida delas consistisse em uma grande diversão, uma grande festa. Mas, os fatos não se deram bem assim. É essa a jornada, que Ernest Hemingway chama de “Primeira Fase em Paris” que acompanhamos no seu livro de memórias Paris é uma festa (Bertrand, 2021).
O escritor, dentro de sua concepção apresenta ao leitor a sua interação, convivência e amizade com muitos escritores contemporâneos seus e que viviam em Paris nas décadas de 1920/ 30. Dentre eles, encontramos nessas páginas Gertrude Stein, Ezra Pound, Ford Madox Ford, James Joyce, Scott Fitzgerald e sua esposa Zelda, Sylvia Beach fundadora da famosa livraria Shakespeare and Company, dentre outras celebridades que por lá estavam nesses anos de festa. A cada uma dessas pessoas, Hemingway dedica um capítulo de suas memórias, contando situações, fatos, diálogos e ainda contextualizando as obras de cada um de acordo com o seu tempo e as suas vivências.
Encontramos em Paris é uma festa relatos do cotidiano do escritor, sua vida com a esposa, o filho bebê, as dificuldades financeiras pelas quais passou nesses primeiros anos em Paris e também os momentos felizes, os cafés com os amigos, os jantares, os locais que gostavam de frequentar e a sua insegurança em relação à qualidade de seus textos. Sim, por muito tempo Hemingway não acreditava em seu talento, não achava seus contos bons o suficiente, vendia-os barato para jornais e revistas literárias, ganhava pouco para sobreviver, passava fome, deixava de almoçar para que sua esposa pudesse comer e muitas vezes aceitava as ofertas de fazer as refeições ou tomar um drink na casa da amiga Gertrude Stein para saciar a fome.
Suas descrições dessas vivências são muito bonitas, simples e tocantes. Nesse livro, diferente dos outros do autor que li, ele aparece mais sensível e seu texto, apesar de não-ficcional, aproxima-se mais de um texto literário, mostrando a sua capacidade de escrita e de provocar empatia no leitor. É sabido que Hemingway deixou o seu trabalho como jornalista nos Estados Unidos para tentar a carreira de escritor de ficção em Paris no início da década de 1920. Lá chegando com a esposa, não tinha dinheiro nem para alugar uma casa ou um quarto para ficar. Logo ele conheceu Sylvia Beach, que se tornou uma grande amiga para ele, ajudando-o a vender seus primeiros contos e conseguir alguns trabalhos para garantir sua permanência em Paris. As idas constantes em sua livraria Shakespeare and Company, fez com que ele conhecesse outros escritores e formasse uma rede de amigos com quem viajava, passava os dias e trocava conhecimentos literários.
Gertrude Stein também foi uma grande amiga para Hemingway, ajudando-o com ideias e dicas para seus romances e apresentando-o às “pessoas certas”. É muito legal acompanhar as amizades se formando e as descobertas literárias do escritor. Em Paris, ele leu os russos pela primeira vez. Em conversas com Ezra Pound, ele afirma que nos Estados Unidos não haviam boas traduções dos gigantes russos. Por isso, quando encontrou as traduções francesas na Shakespeare and Company, não se fez de rogado e imergiu fundo na literatura russa. Leu Guerra e paz várias vezes, afirmando ser este o melhor romance já escrito no mundo. Comentou sobre a facilidade de Turguêniev em descrever a natureza e as paisagens em seu clássico Memórias de um caçador e por fim, tentou muito compreender Dostoievski, mas não foi dessa vez. Ao menos não em sua Primeira fase em Paris.
Os capítulos finais de suas memórias são dedicados ao casal Scott e Zelda Fitzgerald. É engraçado que Hemingway conta que esperou ansiosamente o momento de conhecer Fitzgerald por ele ser mais velho, ter muitos romances publicados e ser um escritor famoso, célebre. Mas, quando esse encontro se deu, à primeira vista, foi uma decepção. Fitzgerald com as suas assincrasias, colocou o amigo em situações constrangedoras, sem saber ao certo como agir. Mas ele não desistiu da amizade com o casal, amizade que se solidificou, prosperou e permitiu que eles vivessem momentos felizes, descontraídos e de muito aprendizado juntos.
O que mais gostei nesse livro foi a sua simplicidade, a sua verdade e o fato de poder conhecer as vicissitudes da vida de um escritor sobre o qual só ouvimos atualmente críticas. Ele foi um homem errante, que viveu sua vida. Abriu mão do conforto de sua terra para tentar fazer aquilo que ama e que acredita em um país estrangeiro, que se tornou a sua pátria. Mesmo em momentos difíceis, de pouco dinheiro e de insegurança, ele viveu cada dia como se fosse o último. Não deixou de lutar por seus romances, procurou trabalhar e manter uma rotina de trabalho, mesmo não recebendo nada por isso ou pouco demais por muitas horas de dedicação. Nos dias de fartura, aproveitou para fazer coisas diferentes, comer em bons restaurantes, comprar um casaco caro para sua esposa, viajar pela Europa, apostar em cavalos de corrida que ele tanto gostava, tomar bons vinhos e aprender a esquiar na Áustria.
Acho que essas vivências tão características de uma geração perdida, que passou por maus bocados durante a Primeira Guerra Mundial, para os norte-americanos, que viram o seu país ir à bancarrota após a queda da bolsa em 1929, são como um oásis no deserto. Talvez só aqueles que estiveram em um front ou que perderam entes queridos e amigos na guerra sabem a importância de uma boa refeição, de um bom cálice de vinho e de não se importar tanto com as vicissitudes da vida. Para eles, cada dia deve ser aproveitado e o dinheiro foi feito mesmo para gastar e proporcionar prazeres que muitas vezes, não têm preço. Mergulhar nessas páginas junto com Hemingway e seus amigos escritores nos lembram um pouco dos nossos sonhos e de todos os prazeres furtados que nos permitimos em uma tarde morosa, quando o trabalho não está fluindo e já não sabemos mais o que fazer para encontrar a nossa concentração.
Aquele café no meio da tarde, o vinho no final do expediente de trabalho, o almoço farto na casa de um amigo, uma viagem inesperada, dormir lendo Memórias de um caçador e acordar com o livro aberto no peito, passar a tarde conversando sobre literatura russa, ler Guerra e Paz, tentar desvendar Dostoievski são coisas que devemos fazer e nos presentear com elas de vez em quando. Afinal, naqueles tempos Paris estava fervilhando de intelectuais, mas, o Rio de Janeiro também já teve a sua época áurea nesse sentido e Viena antes da Segunda Guerra Mundial também era um berço de cultura e sabedoria. Desta forma, qualquer lugar, qualquer cidade do mundo pode ser uma festa, só depende de nós.
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