crítica

Pátria – Fernando Aramburu

Você se lembra do ETA? Aquele grupo que lutava pela independência do País Basco entre as décadas de 1960 até meados dos anos 2000? Eu me lembro bem de ouvir nos noticiários as barbaridades cometidas por esse grupo radical, as explosões a bomba, as mortes, o número de feridos e sentia medo. O que os jornais não contaram é como esse grupo se formou, o que eles realmente queriam e porquê optaram pela luta armada. Também não contaram como a vida das pessoas comuns foi alterada através das ações do ETA.

Em seu livro Pátria (Intrínseca, 2019), Fernando Aramburu leva o leitor a uma viagem pelo País Basco, permitindo-o conhecer um pouco mais sobre a história do lugar, o movimento do ETA e suas consequências na vida das famílias que ali viviam.  Sem julgamentos, sem definir quem tem ou não razão, ele aborda questões muito relevantes sobre amizade, dor, sofrimento, perdas, perdão, maternidade, superação, causa e consequência e sobretudo o efeito da política no dia a dia do cidadão comum.

O País Basco é um território que fica entre os rios Garona e Ebro na divisa da Espanha com a França, centrado nos Pirineus, região bastante montanhosa. Este país tem a sua própria cultura, sua língua (que é diferente do espanhol) e uma população considerável, que permitiria sua independência. O problema é que a Espanha nunca concordou com isso e, depois de tantos protestos pacíficos sem nenhum resultado, o ETA iniciou suas atividades, tornando-se uma ameaça à ordem. É claro que essa questão vai muito além do que está simplificado aqui. Porém, para compreender os personagens, é preciso saber o mínimo do contexto histórico do país.

O enredo proposto por Aramburu vai abordar a amizade entre duas mulheres bascas, que são próximas desde a infância, são confidentes, conhecem seus maridos no mesmo dia, que também são melhores amigos. Essa amizade fraterna vai seguir de forma bastante natural, se estendendo aos filhos até que em meados de 1990, um dos maridos se transforma em alvo do ETA, enquanto um dos filhos do outro casal entra para a luta armada. É claro que essa história não terá um final feliz.

Bittori e Txato são um casal com dois filhos, Xabier e Nereia. Txato é proprietário de uma transportadora de médio porte, que fica no bairro onde moram, empregando alguns vizinhos e amigos. Eles são queridos por ali até que em um dado momento, Txato é procurado pelo ETA, exigindo que ele financie a luta. A primeira cobrança é paga, porém, o grupo exige um valor exorbitante que Txato não tem como pagar. Ele tenta entrar em contato para se explicar, mas não sabe a quem recorrer. Dessa forma, ele e sua família se transformam em párias no bairro, sendo ameaçados constantemente, além de ridicularizados por seus conterrâneos, acusados de traidores do ETA.

Mirem e Joxian são casados também e têm três filhos, Joxe Mari, Arantxa e Gorka. Joxian trabalha na indústria, ganha pouco, é um homem sofrido e sempre cede às vontades da esposa. Ele e Txato são melhores amigos, assim como suas esposas. Seus filhos são bem diferentes uns dos outros. Joxe Mari simpatiza bastante com o ETA, participa dos protestos e posteriormente, entra para o grupo. Arantxa e Gorka são mais ponderados e apesar de compreenderem a luta, não querem se envolver. Os dois, principalmente Gorka, são intelectuais e acreditam no poder da palavra para vencer grandes questões.

A amizade das duas famílias chega ao fim quando Txato se transforma em um alvo do ETA. O interessante aqui é que não há uma tentativa de compreensão ou mesmo uma conversa para que as coisas possam se esclarecer. Existe um silêncio, uma raiva velada e cada um toma partido daqueles que lhe são mais caros. A partir do momento em que Joxe Mari entra para o ETA, há uma transformação em Mirem. Apesar de sempre ter apoiado o movimento, ela não queria um envolvimento maior. Porém, ela é a única pessoa da família que se coloca ao lado de Joxe Mari até o fim.

Esse livro pode aparecer com as classificações de drama familiar e ficção histórica. Mas, nenhuma delas faz jus ao que é apresentado aqui. Através de uma narrativa não linear, alternada entre os personagens, permitindo ao leitor o acesso aos pensamentos e reações de todos eles, o autor nos faz refletir sobre o impacto de uma ação externa dentro da casa das pessoas, dentro das famílias. Ele mostra o sofrimento das pessoas comuns em meio ao caos que o país viveu por muitos anos. Nenhum personagem desse livro é feliz depois do que acontece com Txato e Joxe Mari. Os problemas políticos interferem no casamento das pessoas, na educação dos filhos, no trabalho de todos, nas amizades, em tudo. É impossível se desvencilhar das consequências geradas pela luta armada.

Com personagens muito verossímeis, críveis e reais, Aramburu vai mostrar sem julgamentos a dor da perda, do luto, da quebra de confiança, do desprezo. A luta de Bittori para encontrar respostas, a luta de Mirem para apoiar o filho quando ninguém mais o via como uma pessoa, a luta de Arantxa, uma das personagens mais maravilhosas da literatura contemporânea em superar todas as tragédias impostas pela vida, a luta de Gorka para ser quem ele é em vários sentidos e a entrega de Nereia, Xabier e Joxian à tristeza, ao ódio e à revolta. O uso do álcool e do sexo como lugar seguro, os vícios, o desprezo por si mesmo, o sentimento de culpa e tantas outras questões existenciais estão presentes nessa narrativa, acontecendo em paralelo à luta armada do ETA e seu fim.

Fiz a leitura desse livro há quase um ano e até hoje ele conversa comigo. Vejo muitas Bittoris, Mirens, Txatos, Nereias, Xabiers, Joxians, Gorkas e Arantxas por aí, perdidos, tentando se encontrar. O segredo para se envolver nesse enredo é ter a mente aberta e não julgar esses personagens; o principal aqui é ter empatia, pensar que nenhuma mãe se colocaria contra um filho, por pior que ele seja. E que ainda existem pessoas nesse mundo que são capazes de compreender isso e perdoar. Até mesmo um guerrilheiro pode não ter coragem de fazer mal a alguém que sempre esteve presente em sua vida; afinal, antes de guerrilheiro, ele é um homem. Que pensa, que sente, que sofre. Até onde vai o amor pela pátria?

“Proponho a seguinte definição de nação: uma comunidade política imaginada – e imaginada tanto como inerentemente limitada quanto soberana. É imaginada porque até os membros da menor nação nunca conhecerão a maioria de seus compatriotas, nunca os verão ou ouvirão falar deles, ainda que na mente de cada um viva a imagem de sua comunidade…

A nação é imaginada como limitada porque mesmo a maior delas, que abriga talvez um bilhão de seres humanos, possui limites finitos, ainda que elásticos, além dos quais há outras nações…” Benedict Anderson

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