crítica

Poeta Chileno – Alejandro Zambra

Fazia tempo que eu não lia um livro leve, bem-humorado, que tratasse da vida, do cotidiano das pessoas de uma forma menos complexa e mais voltada para a narrativa em si que para as questões filosóficas da vida. Quando a leitura foi proposta no Clube Leia Latinos, algumas pessoas me garantiram que eu iria amar Poeta Chileno e o meu feeling de leitora também me dizia isso. Porém, nas primeiras páginas houve o estranhamento – o livro começa com as tentativas frustradas de Gonzalo, um dos protagonistas, em ter as suas primeiras experiências sexuais com a Carla, sua namorada na época. O autor não poupa seus personagens do vexame, algo que acaba nos aproximando de seu texto, pois quem nunca passou por situações constrangedoras na juventude?

No entanto, poucas páginas depois, há uma longa passagem de tempo e reencontramos o casal Carla e Gonzalo nove anos depois em um encontro inusitado em um lugar totalmente aleatório, onde eles reatam o relacionamento. Neste ponto, Carla tem um filho de seis anos, Vicente, que vai alterar toda a dinâmica da relação dos dois. O que acompanhamos ao longo de boa parte do romance é a relação familiar que se constrói a partir desse reencontro, algo muito contemporâneo porque acho que nunca tivemos tantas famílias formadas por duas mães, dois pais e principalmente a relação entre padrasto e enteados/ madrasta e enteados. E o mais legal é que neste romance, teremos o ponto de vista de um pai em formação e não o lugar-comum que encontramos frequentemente na literatura, que é a relação mãe-filhos, tratada de forma mais real, sem romantização.

Vicente é filho de Carla com León, um namorado que teve durante sua juventude e que, por causa da gravidez inesperada, casaram-se de forma bastante irrefletida. Dessa maneira, o casamento não durou muito e León saiu de casa quando Vicente ainda era um bebê. Os dois, tomados por uma enorme imaturidade, organizaram uma dinâmica de visitas, onde Carla não precisaria ver León e nem travar com ele nenhum tipo de diálogo. Algo totalmente destrutivo para a relação entre pai e filho, que não se desenvolveu como deveria, sendo que não havia diálogo entre os seus pais biológicos. Apesar da infantilidade de Carla, que estava magoada com o fim do relacionamento, León nunca se esmerou em seu um bom pai, identificando-se com muitos outros pais que só figuram no papel:

Eles acham que são generosos porque contribuem com setecentos pilas por mês, mas nunca fazem uma tarefa de casa com os filhos, que ainda assim os amam e os incluem em todos os desenhos. Mesmo que não cheguem. Porque às vezes eles não chegam. Os pais biológicos, os pais separados, os pais da porta para fora são todos a mesma merda. Às vezes não chegam, e fica tudo bem. Essa garantia foi dada a eles. Podem desaparecer que continuarão sendo esperados, perdoados, bem-vindos, e qualquer demora, qualquer reclamação, qualquer coisa pode ser consertada com um saco de pipoca ou com enigmáticos ursos de pelúcia. (…) E depois, com os dedos ainda impregnados do óleo da batata frita, esses homens tão sacrificados se dedicam a sorver sundaes com calda de caramelo e pedem inúmeros cafezinhos expressos enquanto seus filhos mergulham angustiantemente em estúpidas piscinas de bolinhas coloridas. (…). Seus filhos constituem a isca perfeita para atrair mulheres cada vez mais deslumbrantes e ingênuas. Mulheres cada vez mais jovens, desinibidas e complacentes, que premeiam o suposto esforço, a pretensa abnegação desses pais de ocasião, deslumbradas, cativadas pela promessa de um futuro que com sorte dura dois meses” (ZAMBRA, 2021, pág. 92/ 93)

Essa dinâmica que Zambra chama de “pais de ocasião” é algo muito comum nas famílias atuais. Isso não quer dizer que os pais separados não amem seus filhos, entretanto, eles não têm com eles as vivências do cotidiano que são construídas com a mãe, os avós, parentes maternos e o padrasto, quando entra nessa relação familiar. Nestes casos, aqueles que estão convivendo com a criança no seu dia a dia, são os educadores, aqueles que vão dar os limites, dizer todos os nãos e corrigir os erros. Também são os que vão cuidar das doenças, levar e buscar na escola, cobrar o dever de casa e a ordem das coisas, sobrando para o “pai de ocasião” a parte boa e divertida, sem a “obrigação” de corrigir, cobrar e educar. A relação dessa forma fica desigual e injusta, porém, é com aqueles que estão presentes no dia a dia que a criança vai criar vínculos de afeto, de referência e de inspiração. Esse é o enredo de Poeta Chileno. E posso garantir que Zambra foi honesto e desenvolveu o tema de forma primorosa.

Com a chegada de Gonzalo, Vicente a princípio ficou reticente, como era de se esperar. Ninguém conversou com ele sobre o assunto e aquele homem foi ficando em sua casa, até que ele se deu conta de que Gonzalo morava ali. Os dois começaram a desenvolver uma relação de pai e filho, saindo juntos, jogando bola, brincando no parque e até mesmo criando dinâmicas inusitadas como visitas ao cemitério para pensar. Porém, em um dado momento, foi preciso nomear essa relação e neste ponto, entra uma das minhas partes favoritas do livro, que claro, fala muito sobre linguagem, afinal Gonzalo é um poeta chileno, um professor de literatura e essa nomeação da relação entre os dois é algo tocante e reflexivo:

Então, como se estivesse materializando um pensamento não formulado, pegou o dicionário e procurou pela palavra padrasto. Leu a primeira acepção: ‘Marido da mãe, em relação aos filhos que ela possui’. A segunda dizia diretamente: ‘Pai ruim’. A terceira ele desconhecia: ‘Obstáculo, impedimento ou inconveniente que perturba ou causa dano em uma matéria’. Até mesmo a quarta acepção, bem mais técnica, pareceu-lhe humilhante: ‘Pedaço pequeno de pele que se levanta da carne imediata às unhas das mãos, e causa dor e estorvo’. (…) A palavra inglesa sepfather lhe parecia tão mais amável, elegante e precisa que a palavra padrasto, marcada por esse estúpido sufixo pejorativo. ‘The husband of one´s parente when distinct from one’s natural or legal father’. (…). Para os mapuches – disse Ricardo, adotando uma repentina dicção professoral -, chau é o companheiro da mãe, dá no mesmo se é o pai biológico ou não. Chau é o nome de uma função, a função-pai. (…) Quer dizer que se você foi chau continua sendo um, mesmo que haja outro chau ocupando o seu lugar” (ZAMBRA, 2021, pág. 95/ 96/ 97)

A tomada de consciência do personagem a respeito dessa palavra, nos leva a refletir sobre o quanto os termos padrasto e madrasta são pejorativos nas línguas espanhola (original do romance de Zambra) e também na portuguesa. Quando a dizemos ou classificamos alguém como nosso padrasto ou madrasta, é mais ou menos como se estivéssemos nos referindo a uma pessoa má, de acordo com todas as classificações significativas do dicionário. Ainda não consegui compreender e Zambra também não se estende muito no assunto, como essas palavras ganharam esse cunho tão negativo em nossa linguagem. Creio eu, que estejam no nosso inconsciente coletivo, fazendo parte do imaginário popular dos contos de fadas deturpados e de tantos filmes de terror e suspense que foram produzidos sob esse estereótipo daquele que separa as famílias tradicionais.

No entanto, em Poeta Chileno, acompanhamos Gonzalo se tornando pai, aprendendo a ser pai, a amar aquele filho, conviver com ele, colocar limites, negociar e ser um esteio a ele e à Carla quando precisam. Um dos momentos mais icônicos do livro, onde há um embate entre o casal Carla e Gonzalo contra Vicente, é quando a gata deles, Oscuridad fica doente e precisa fazer uma cirurgia que eles não têm condições de pagar. No lugar de contarem logo a Vicente que não fariam a operação, decidem postergar esse assunto até o limite, chegando ao ponto de o garoto tentar vender as suas coisas para pagar o veterinário. Nem assim os pais são totalmente sinceros com ele, algo que permeia as relações de Carla. Ela tem uma grande dificuldade em conversar com quem quer que seja para resolver seus problemas. Está sempre se esquivando de conversas incômodas, fugindo dos enfrentamentos da vida. E esse comportamento lhe cobrará um preço alto ao longo da trama.

Quando o casal sofre um aborto, mais uma vez Carla se recusa a falar sobre o assunto, se fechando a todos à sua volta. Além disso, motivada por um horóscopo e um sonho, ela decide que nunca mais irá engravidar. Essa decisão unilateral tem um peso muito grande na relação dos dois e assim, Gonzalo se inscreve para um doutorado em uma universidade norte-americana. A falta de diálogo em casa e o fato de estarem sempre fugindo dos enfrentamentos da vida, tentando resolverem as coisas de forma individual, leva Gonzalo a demorar demais para contar à esposa que fez essa inscrição e quando resolve contar, já é tarde demais, pois, superando as suas expectativas, ele foi aceito na universidade de Nova York. Por mais que tentasse explicar a Carla que sempre teve a intenção de levar tanto ela quanto Vicente com ele, ela não acredita e assim, termina o relacionamento de seis anos com Gonzalo, sem muitas explicações e sem mesmo brigarem para tentarem se entender.

Esse rompimento abrupto da relação dos dois nos leva a refletir que muitas famílias devem se desfazer dessa forma. É algo bastante comum dos nossos tempos a famosa solidão a dois, quando cada pessoa vive no seu mundo particular e não há uma vida familiar se desenvolvendo. As conexões vão se perdendo, assim como a intimidade e quando as pessoas se dão conta, existe um abismo entre elas e inúmeras coisas não ditas, segredos, traições, mentiras. Talvez a ausência de uma briga, de uma conversa na tentativa de um entendimento tenha sido realmente desnecessária, já que, desde que Carla tomou uma decisão unilateral e não quis falar sobre a sua perda e os seus sentimentos com Gonzalo, houve um rompimento prematuro entre eles, que encontrou o seu ápice com a aprovação do marido para um doutorado em outro país que ela desconhecia.

No ensejo da separação definitiva do casal, Gonzalo tinha acabado de escrever a sua primeira antologia poética. Ele publicou, pagando do próprio bolso, poucos exemplares do livro, dedicando um a Carla, ficando com outro e deixando o terceiro em uma livraria da cidade. A maior frustração de Gonzalo é não ser um poeta reconhecido, famoso. Ele escreve desde muito jovem, sempre foi inteligente e bom aluno, criando nos pais uma grande expectativa de que faria uma faculdade “importante”, como direito ou medicina. Mas, contrariando a todos, como bem disse Coetzee, “ninguém quer ler sobre filhos dóceis”, Gonzalo fez Letras, com a perspectiva de ser poeta. Na verdade, ele sabe bem que não se destaca no meio da multidão com sua poesia. Compreende racionalmente que ela é de má qualidade e que apenas um ou outro poema seu realmente é sensível, bom e pode tocar algumas pessoas. Mas no geral, ele não tem talento para ser poeta e viver de sua arte. Como 90% das pessoas que fazem a faculdade de Letras a fim de ser escritor e não conseguem tal feito, Gonzalo tornou-se um professor universitário medíocre.

Em Nova York desistiu de vez de escrever poesia e se dedicou à crítica literária e às aulas na universidade. É possível que tenha sido mais feliz assim. Ele procurou ser aquilo que pode ser e não alguém extraordinário como desejava. Vamos reencontrá-lo apenas na última parte do livro, quando ele volta ao Chile e faz reflexões sobre a sua vida. Na terceira parte desse romance, acompanhamos Vicente entrando na idade adulta, passando por experiências semelhantes às de Gonzalo no início do livro e tentando obstinadamente ser poeta. Ele também tem ideais políticos fortes, recusando-se a fazer uma faculdade, na espera de que a oportunidade de estudar e de cursar uma universidade seja igual para todos os chilenos. Ele tem seu grupo de amigos, que também são poetas chilenos, alguns bons outros ruins e uns poucos sendo publicados e destacados da multidão. Vicente é consciente de sua mediocridade e por isso não tenta em vão publicar algo impublicável.

Em um de seus dias de luta, ele conhece uma jornalista estadunidense perdida na cidade, que pretende escrever uma matéria sobre os poetas chilenos. Com segundas intenções, Vicente se oferece para ajudá-la nessa empreitada e é aí que conhecemos muito do que é ser poeta no Chile e de como essa poesia está viva no país. Pru, a jornalista, também tem uma história complicada, questões com a sua sexualidade, além de ser vítima de relacionamentos abusivos e abandono. Fragilizada, o encontro com Vicente e com os poetas chilenos lhe ajudam a enfrentar suas dores e a enxergar o mundo sob outra perspectiva. Nesse ponto da narrativa também acompanhamos os sentimentos de Vicente em relação a Gonzalo: ele não entende bem o que sente, mas tem por ele um carinho muito grande. Além disso, por seu caráter e seu comportamento, fica evidente que Gonzalo foi para ele a referência paterna de que precisava. É como se ele repetisse a jornada do padrasto.

Na última parte do romance, acompanhamos o reencontro dos dois, que é lindo, onde eles conseguem conversar abertamente, como adultos e esclarecer que a relação deles foi importante para os dois e que ambos mudaram a vida um do outro. Zambra tem uma escrita fluida, muitas vezes engraçada, deixando um enredo que nos diz tanto sobre a família moderna, a constituição dos laços afetivos, a rotina, o dia a dia, as construções de significados e de sentidos da nossa existência de uma forma bonita e leve, utilizando-se para tanto de várias referências da cultura pop, tais como séries de TV, filmes, aplicativos do celular que utilizamos com frequência, músicas e livros. Ele também leva o leitor a um passeio por Santiago, descrevendo lugares que para quem conhece, é um deleite ler e rever essas paisagens. Há também muitas paradas em restaurantes para comer uma coisinha típica do Chile, tomar um drink diferentão para nós e para guardar como recordação, assim como a Pru, temos o famoso pão com abacate que é citado algumas vezes ao longo da prosa.

Se você está buscando uma leitura leve, bem-humorada, mas que não seja tola e fútil, aposte em Poeta Chileno, ele vai te surpreender. Recentemente, a Companhia das Letras lançou além desse romance do autor, um outro livro contendo todas as suas novelas já publicadas, que já fiquei sabendo são tão boas quanto este livro resenhado hoje. Então, ficam as dicas de livros de um escritor chileno contemporâneo, que tem a capacidade de entreter com qualidade.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *