literatura

Por que ler Thomas Mann

Não há como negar que Thomas Mann foi um exímio escritor, que teve o dom de colocar em palavras tanto sentimentos humanos, quanto questões universais e atemporais que se alinhavam muito bem ao seu tempo, fazendo sempre críticas à decadência e à desintegração pela qual a Europa passava no começo do século XX. Mesmo não sendo o escritor uma pessoa perfeita, cheia de qualidades interpessoais, ele conseguia perceber algo muito grandioso que estava acontecendo com as pessoas ao seu redor e com o mundo e tinha o talento de escrevê-las através de alegorias, de fábulas ou de histórias realistas desconcertantes, mas que na verdade estavam falando sempre sobre as mesmas questões: o estrangeirismo, a decadência, a perda dos valores tradicionais e a dificuldade das pessoas em lidar com as mudanças e com a modernidade que chegavam ao continente europeu.

Filho de um comerciante alemão e uma artista brasileira, o escritor se sentia diferente de seus pares, um tanto deslocado na sociedade e isso se reflete em todas as suas obras. Ele criou personagens que assim como ele não se identificavam com o meio ao qual estavam inseridos socialmente, mas que tentavam a todo custo permanecer ali e se enquadrar nas regras e condutas impostas por essa sociedade. Com a mãe aprendeu a apreciar a música, principalmente a de Wagner que influenciou fortemente a sua obra literária. Após a morte de seu pai, quando tinha 17 anos, mudou-se para Munique com a mãe, que se tornou uma grande anfitriã social, promovendo saraus literários e festas em sua casa.

Thomas Mann sempre teve indícios homossexuais, que deram embasamento a algumas de suas obras, principalmente A morte em Veneza. Entretanto, casou-se com Katia Pringsheim, uma mulher judia, com a qual teve seis filhos. O casal vivia na Suíça quando Hitler tomou o poder na Alemanha e assim precisaram se exilar nos Estados Unidos. Diferente de seu protagonista no romance Os Buddenbrook, Thomas Mann se dedicou à escrita desde muito jovem, abandonando os negócios da família. Seu irmão Heinrich, também se dedicou à literatura, mudando-se para a Itália. Neste caso, cada um seguiu o seu caminho, fazendo escolhas mais subjetivas que pragmáticas, como acontece com alguns de seus personagens literários. O escritor trabalhou como jornalista e ensaísta, tornando-se editor de Simplicissimus, um jornal satírico-humorístico da capital alemã.

Em 1901, Mann fez a sua estreia na literatura com Os Buddenbrook, um romance que tem muitas características autobiográficas, mas que segue um outro rumo, podendo ser interpretado como uma alegoria à Alemanha do final do século XIX, onde muitas coisas estavam mudando e as famílias tradicionais tinham muita dificuldade em acompanhar esse desenvolvimento e aceitar que a antiga aristocracia estava cada vez mais perdendo o seu poderio de influenciar nas decisões políticas e econômicas do país. O romance é extenso e por isso, o editor sugeriu ao autor que diminuísse o seu tamanho. Para a nossa sorte, Mann não aceitou a crítica e decidiu publicá-lo como estava, correndo o risco de ter a sua carreira literária encerrada logo no lançamento do seu primeiro romance. Como bem sabemos, não foi o que aconteceu. A recepção de Os Buddenbrook foi ótima e o livro fez muito sucesso.

Durante a primeira guerra, o escritor se colocou a favor da Alemanha, dizendo-se patriota. Naquele tempo ele realmente acreditava nos ideais que defendia e dessa forma, colocou-se em conflito com o irmão Heinrich, que se posicionou ao lado da França, defendendo “a civilização”. Foi um tempo difícil, Mann colocou sua casa à venda a fim de patrocinar o exército alemão. Sua mãe Julia precisou intervir para que houvesse a paz entre os irmãos, porém, nenhum deles estava inclinado a ceder, abrindo mão de seus princípios e ideias políticos. Em um de seus romances mais aclamados, A montanha mágica, Mann dedica um capítulo à explicação de sua perspectiva em relação ao seu posicionamento durante a primeira guerra. Ele escreveu também um ensaio sobre o tema, Considerações de um apolítico.

O escritor recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1929, momento em que o júri se refere ao seu romance Os Buddenbrook, deixando de lado A montanha mágica, onde Mann demonstra simpatia à democracia. Em 1933, Mann e sua família mudaram-se para a Suíça, pois com a ascensão de Hitler ao poder, foram expatriados da Alemanha. O nome do escritor, de sua esposa e dos quatro filhos mais novos saiu no jornal Völkischer Beobachter na lista número sete de expatriados do país. Os dois filhos mais velhos de Mann já haviam perdido a cidadania alemã anteriormente. Thomas Mann perdeu a cidadania alemã no dia 2 de dezembro de 1936, vivendo em Zurique até 1938, quando decidiu mudar-se para os Estados Unidos. Lá foi professor universitário, porém, a academia o entediava e por isso dedicou-se à literatura e ao engajamento político, sendo cotado por Roosevelt a uma possível indicação para o governo da Alemanha pós-guerra. Os Estados Unidos se tornaram um lugar hostil para Mann e sua família na era McCarthy, onde os intelectuais passaram a ser perseguidos. Apesar de ter cidadania norte-americana, o escritor resolveu voltar para a Suíça onde viveu até a sua morte em 1955.

Thomas Mann vem de uma família tradicional da Alemanha, daquelas que existem desde a Idade Média e esses valores foram fundamentais para a formação de seu caráter e de sua índole. Para as pessoas que cresceram sob a influência desses ideais, o cumprimento dos deveres, o trabalho, a lealdade, a ordem e o perfeccionismo constituem as bases de sua existência. Esse legado fica muito evidente em seu primeiro romance, quando o patriarca dos Buddenbrook é descrito e desenvolvido nas primeiras partes do livro. Para o personagem, a vida de uma pessoa se qualifica através do trabalho, do pagamento de suas contas em dia, da manutenção de sua família, da lealdade aos seus pares e das tradições constituídas desde os tempos mais antigos.

Essas reverberações de seu romance encontram eco na sua cidade natal Lübeck, onde as tradições nórdicas protestantes, acéticas e frias se chocam com as civilizações mais simples, católicas, rústicas e bonachonas, conhecidas como bávaros. Essa tensão interior reflete não apenas a sua sensação de estrangeirismo, como também o viver entre dois mundos de vários outros alemães, que não sabiam para que lado ir. No caso de Thomas Mann, as influências de sua mãe, com alma de artista se contrapunham com o ambiente protestante e austero de seu pai, que, de acordo com as tradições, esperava que Thomas e o irmão Heinrich dessem continuidade ao seu legado no comércio. A influência subjetiva de Julia predominou e a veia comercial da família Mann se perdeu com a morte do patriarca. Esse é basicamente o enredo de Os Buddenbrook, onde o autor consegue transmitir todos esses sentimentos de tensão, nos apresentando uma família em decadência, onde os filhos não dão conta de dar continuidade ao legado tradicional da família.

Em A montanha mágica, o escritor faz um retrato da Europa em ebulição durante a primeira guerra. É uma obra de cunho filosófico, onde algumas pessoas da vida real inspiraram personagens do romance, tais como o seu primeiro amor, Paul Ehrenberg, com quem viveu uma relação conflituosa, pois não foi correspondido em seus sentimentos. Além disso, o romance traz também questionamentos sobre a vida, a morte, o individualismo e o escapismo, refletindo o espírito de seu tempo. Seu último romance, Doutor Fausto, coroa todos esses personagens anteriores com Adrian Leverkun, um músico que decide fazer um pacto fáustico em troca de sucesso, mas paga um preço muito alto por isso. Neste romance, há todos os elementos que caracterizam a obra do escritor: o estrangeirismo, as doenças, a morte, a arte, as escolhas e suas consequências, além dos aspectos filosóficos que sempre estiveram presentes na obra de Mann. O livro também pode ser lido como uma alegoria à Alemanha nazista que promoveu a morte e a destruição em função de ideais controversos de um líder estrangeiro.

Para Anatol Rosenfeld, crítico literário, “a obra de Mann é uma expressão estética do esforço de contrapor seus dois valores essenciais: de um lado a sociedade, o senso comum, o valor da vida; do outro a alienação, o individualismo, o escapismo romântico, o jogo estético, que culminam na doença e na morte. O escritor sente-se, no entanto, ligado ao segundo valor, sendo ele um artista alienado, marginal e estetizante”. Ao mesmo tempo em que os textos de Mann são muito subjetivos e filosóficos, eles são também de um rigor estético enorme. Um trabalho bem feito, com uma preocupação sincera em relação ao perfeccionismo, característica herdada de suas ascendências de Lübeck. Todo esse conjunto de fatores tornam a obra de Thomas Mann magnífica, irretocável, de caráter universal e atemporal, alçando-o ao cânone da literatura mundial, onde figuram “aqueles que nunca terminam de dizer aquilo que pretendem dizer”.

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