literatura

Por que ler Tolstói

Para as pessoas de mente inquieta, cheias de questionamentos éticos e morais e que estão em busca de si mesmas ou de sentido para a vida, ler Tolstói é realmente um acontecimento. Digo isso porque o escritor despertou em mim insights muito profundos a respeito de uma porção de coisas, mas principalmente sobre como ser boas pessoas em um mundo complexo, onde até mesmo as boas intenções terminam em verdadeiras catástrofes ou provocam incômodos em muitos semelhantes. É claro que discordo de Tolstói em diversos aspectos e esse é mais um motivo para lermos suas obras: até mesmo para discordar dele, é preciso pensar bastante para embasar argumentação consistente que dialogue com a sua visão de mundo.

Tolstói nasceu em uma família bastante abastada, em uma época onde a Rússia era dividida em duas classes: a nobreza e os mujiques, que eram camponeses, que pertenciam aos nobres. O escritor perdeu os pais cedo e essas perdas foram muito importantes na sua obra e também na formação do seu caráter. Foi uma criança sensível e observadora, algo que também aparece em sua obra, através da humanidade com a qual ele desenvolve seus personagens e enredos. O escritor seguiu as regras da sua classe, foi cursar a faculdade de direito e línguas em Moscou, mas não se sentiu pertencente àquele universo, deixando os estudos e voltando à sua propriedade rural Iasnaia Poliana.

Insatisfeito com os rumos que sua vida estava tomando e também cheio de questionamentos, Tolstói passou a frequentar os eventos sociais em São Petersburgo, iniciando uma das fases mais complexas de sua vida – bebidas, mulheres e jogos de azar constituíam a sua diversão favorita, levando-o à falência. Essas experiências também aparecem em suas obras, de forma bastante humana. Em 1851, resolveu se alistar no exército e esse foi o gatilho para a sua iniciação na escrita narrativa. Por uma necessidade de compartilhar com as pessoas as suas experiências na guerra, ele escreveu sua primeira obra de ficção – Infância, Adolescência e Juventude, que fez muito sucesso na Rússia. Ainda nos dias de hoje, essa obra se mantém atual e atemporal, por sua sensibilidade, que dá indícios de sua mente inquieta.

Logo depois, o escritor publicou alguns contos que se debruçavam sobre as suas vivências na guerra e na sua falta de sentido. Ler os contos de Tolstói é uma experiência fantástica porque eles nos conduzem à uma cronologia de mudanças de paradigmas vivenciadas pelo autor, que aparecem perfeitamente em seus contos. Eles ganham uma camada a mais de sentido quando lidos junto à sua biografia, porque expressam os incômodos pelos quais Tolstói passava. O subtítulo desse site é “conversando sobre livros que fazem pensar” e, os contos de Tolstói foram obras que me levaram a diversas reflexões, questionamentos e busca de uma solução possível para a humanidade. São textos realmente transformadores.

A partir dos contos também é possível perceber a nova fase do escritor, que vem da maturidade adquirida após suas leituras tanto de ficção, quanto de filosofia, que o levaram a questionar a situação dos servos na Rússia, provocando-lhe um novo incômodo, que o acompanharia até o fim da vida. Além dos contos, seu posicionamento a respeito dos servos aparece com muita profundidade em seu maravilhoso Anna Kariênina, onde há discussões preciosas sobre o tema. Após a abolição da servidão na Rússia, Tolstói resolveu educar os mujiques. Pode parecer algo arrogante de sua parte, mas a intenção foi boa. Ele acreditava que a educação poderia transformar a vida daquelas pessoas e que só através do conhecimento, do pensamento crítico e da consciência do indivíduo, que vem da educação eles poderiam ter a oportunidade de crescimento pessoal, social e econômico.

Infelizmente seus planos não deram tão certo quanto ele imaginou. A vida é muito mais complexa que podemos prever e os servos não entenderam muito bem as suas intenções. Mesmo com as revisões nos contos de fadas, adaptando-os para a realidade da Rússia, seu projeto educacional lhe gerou alguns problemas com as autoridades, que não viam sentido em educar os antigos servos, pretendendo que eles permanecessem no lugar onde sempre estiveram. Apesar das dificuldades, Tolstói conseguiu ensinar muita coisa a muitas crianças, que inclusive o tinham em alta conta. Posteriormente, seu modelo educacional foi adotado em muitas escolas e seguido por alguns de seus filhos.

Visionário por ser tão inquieto e buscar tantas respostas para as grandes questões existenciais, Tolstói foi capaz de perceber que os casamentos não davam muito certo por serem extremamente idealizados e romantizados, mas também, principalmente pela falta de comunicação entre o casal: as pessoas não conversavam, não falavam sobre seus próprios sentimentos e isso provocava um afastamento entre marido e mulher, cada um pensando coisas ruins sobre o outro, sem nunca falarem sobre suas aflições a fim de tentar resolvê-las. Dessas observações nasceram a novela Felicidade Conjugal e Anna Kariênina. De acordo com o escritor, os romances não deveriam terminar com o casamento e a felicidade eterna, mas sim começarem após o casamento, pois é aí que começam também os conflitos.

Após se casar com Sônia, aquela que foi sua esposa por toda a vida, Tolstói entrou em uma de suas fases mais felizes, prósperas e de muitas realizações memoráveis. Foi nessa época em que ele construiu sua escola, escreveu Guerra e Paz, Anna Kariênina e outras obras importantes de sua carreira. Depois, com as vicissitudes da vida, a perda de muitos de seus filhos e outros reveses, ele passou à última fase de sua vida e obra, que é a mais polêmica de todas: se tornou um homem moralista e religioso, ainda assim, criticando muito as organizações ortodoxas. A partir desse ponto de virada, tomou antipatia de sua obra-prima, Anna Kariênina e passou a enxergar o gênero romance como um meio de denúncias e críticas sociais, deixando de se preocupar com a estética literária.

Em Uma confissão, o autor expõe todas as suas aflições e questionamentos, que o levaram à sua crise espiritual. Assim, abandonando a estética de suas obras, o escritor se sentiu livre para utilizar a escrita com o propósito de denunciar tudo aquilo que achava errado na sociedade russa. Ainda assim, acredito que essa característica da boa escrita era algo intrínseco ao autor, pois ele publicou A morte de Ivan Ilitch já nessa fase e o livro é espetacular. As obras que vieram em seguida, foram mais polêmicas e incômodas, pois, elas refletiam o espírito do autor naquele momento e as falas de alguns personagens são muito desconexas com o mundo atual, mas para ele faziam sentido. Por isso reafirmo que até mesmo para discordar dele, é preciso refletir e pensar bastante para argumentar e compreender os questionamentos do autor, que podem ser perguntas que nós mesmos nos fazemos sempre.

Para termos uma ideia da profundidade da obra de Tolstói, alguém um dia disse que “não devemos enxergar Anna Kariênina como um objeto de ficção, mas como um fragmento de vida”, pois o autor sempre conseguiu retratar de forma precisa a natureza humana, independente de seus personagens serem mujiques, nobres, soldados, prostitutas, padres ou qualquer outro indivíduo, eles tinham em comum algo que todos nós também temos: a humanidade, sentimentos universais e atemporais. A essência do ser humano é a mesma desde os tempos mais remotos. Tolstói é um escritor que deve ser lido, estudado e lembrado sempre, pois, talvez ele tenha sido um dos escritores que melhor conseguiu expressar os sentimentos humanos, até mesmo quando não queria mais fazer isso.

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