vida de leitor

Relação entre pais e filhos com abordagens literárias

Voltando mais uma vez às digressões de Sigrid Nunez (preciso ler o outro livro dela publicado no Brasil urgente – como podem ver, eu amei O amigo e ele me gerou muitos insights interessantes), o assunto de hoje são as relações familiares, principalmente aquelas voltadas especificamente à figura paterna, que ajudou alguns escritores a produzir livros maravilhosos mundo a fora. Talvez, o pioneiro nesse caso, seja Sófocles com o seu icônico Édipo Rei. A partir dessa tragédia grega, Freud estudou e desenvolveu uma teoria interessantíssima sobre as nossas relações conflituosas com os nossos pais, surgindo daí uma expressão que se tornou muito conhecida, caindo no imaginário popular, que é o “complexo de Édipo”. É claro que tanto o texto de Sófocles quanto os estudos freudianos contribuíram para uma enxurrada de textos literários que abordam essa temática, porém, algumas vêm chamando a atenção ultimamente por terem um caráter autobiográfico, sendo a escrita, o texto em si uma forma de desabafo ou de reconciliação com a figura paterna “ausente” de tantas formas.

Minha leitura atual é A invenção da solidão, do escritor norte-americano Paul Auster, que tem como base a morte de seu pai, onde ele reflete de forma ensaística e memorialística as relações que temos com as pessoas e com o mundo a partir das nossas vivências e experiências pessoais. O relato do escritor é muito tocante, ele desvenda os meandros da vida de seu pai e aponta os motivos que o levaram a se isolar do mundo, das pessoas e viver sempre uma eterna ausência. De acordo com Natalia Ginzburg “você não pode esperar consolar-se da sua dor com a escrita”, porém, assim como Auster, Didier Eribon, Annie Ernaux, Karl Ove Knausgard, Joan Didion e Isabel Allende discordam dela. Temos aqui um forte embate: será que escrever sobre as intimidades de uma pessoa a fim de superar sua morte é uma forma de fazer as pazes com o passado ou uma maneira de ganhar dinheiro com a tragédia?

Toni Morrison acha que “basear um personagem em uma pessoa real é uma violação de direitos autorais. As pessoas são donas da própria vida e a vida não é para ser usada em uma obra de ficção por outrem”. Neste caso, Virgínia Woolf e Vigdis Hjorth violaram essa regra fortemente, pois os belos romances Ao farol e Herança e testamento são obras ficcionais baseadas em suas próprias vivências, mas que têm como centro a sua convivência familiar, sendo esta uma forma de colocar para fora a dor da perda, das angustias e do sofrimento que passaram. Woolf diz que “suponho que fiz por mim mesma aquilo que os psicanalistas fazem por seus pacientes. Expressei uma emoção sentida por muito tempo e de maneira muito profunda. E ao expressá-la, expliquei-a e então a deixei em suspenso. Depois disso, a obsessão cessou: não ouço mais a voz dela; não a vejo mais

Hjorth e Knausgard pagam um preço alto por essa exposição de suas famílias na literatura: estão sendo processados por seus parentes que não concordam com o posicionamento dos autores ao relatarem experiências traumáticas e íntimas para todos eles. Assim, será antiético escrever sobre nossos entes queridos? E nós como leitores, porque ainda lemos esses textos? Joan Didion mesma já levantou essa hipótese em um de seus ensaios, questionando as regras morais em ler diários e correspondências de escritores aclamados após a sua morte. Isso me lembra imediatamente as ridículas e desrespeitosas batalhas judiciais travadas entre Ted Hughes e a mãe da Sylvia Plath para publicar os seus diários e as suas correspondências postumamente a fim de ganhar dinheiro e de ter razão. A memória daquela mulher que tanto sofreu na vida, em momento algum, foi respeitada.

A escritora alemã Christa Wolf diz que “escrever sobre alguém é uma forma de matar essa pessoa. Transformar a vida de alguém em uma história é como tornar a pessoa uma estátua de sal”. A vergonha de ser escritora a assombrou por toda a vida. O que é totalmente compreensível, no sentido da responsabilidade do escritor ao tornar pública uma história que pode ter base em fatos reais – como a maioria dos romances. Não que tudo o que lemos seja um tipo de autoficção, mas o texto contém muito de nós em si, das nossas coisas prediletas e do nosso viés ideológico. Portanto, há uma grande responsabilidade em tudo aquilo que escrevemos, falamos e tornamos público. A recepção literária é sempre muito subjetiva e varia de uma pessoa para a outra. Assim, o argumento de Christa é muito pertinente.

O que é um tanto diferente dos livros que venho abordar nesse texto: eles foram escritos com o intuito de compreender melhor as idiossincrasias de seus pais após a sua morte, com um desejo enorme de superar o luto e de entender por que em vida, não tiveram uma convivência tranquila e paternal como deve ser. Esses escritos memorialísticos são mais uma homenagem humanizadora da figura paterna que uma crítica ao seu comportamento. Em muitos desses livros aprendemos não apenas sobre a pessoa biografada, mas também sobre um comportamento social predominante naquela época e que influenciou de forma contundente as ações e escolhas daquele indivíduo.

Vou sugerir nesse texto cinco livros de memórias que têm como gatilho a morte do pai e que se tornaram grandes obras socioautobiográficas – que partem do privado para o coletivo, ajudando outros indivíduos a pensarem sobre as condições de vida de uma certa época, que influenciaram diretamente o comportamento de um grupo de pessoas. Além desses livros de não-ficção, para dar uma descontraída, porém com abordagens profundas dos relacionamentos familiares, indico cinco obras de ficção muito boas e que nos levam a reflexões pertinentes ao tema.

Obras de não-ficção:

  • O lugar – Annie Ernaux (Fósforo, 2021): neste pequeno livro a escritora francesa compartilha com o leitor a história de seu pai e suas idiossincrasias, próprias de seu estilo de vida, de sua época e das dificuldades que uma pessoa que nasceu no campo e não pode estudar encontra ao se mudar para a cidade.
  • Carta ao pai – Franz Kafka (Companhia das Letras, 1997): texto longo para uma missiva, porém, de leitura fluida, apesar da densidade do tema que o autor vai abordar nessa tentativa de se fazer entender por seu pai. O motivo dessa carta é o fato de o escritor estar internado em um sanatório, em tratamento contra a tuberculose e, por achar que não sobreviverá, ele resolve desabafar sobre suas frustrações, que em sua opinião, foram causadas por seu pai e seus preconceitos. Impactante e visceral.
  • A morte do pai – Karl Ove Ksnaugard (Companhia das Letras, 2015): livro extenso de memórias, onde o escritor conta a sua experiência em perder o pai, um homem que sofria com o alcoolismo e que nunca foi presente na relação com os filhos, deixando para eles uma lembrança nebulosa que flutua entre o medo, a raiva e o amor. Livro lindo, reflexivo e muito tocante.
  • Retorno a Rimes – Didier Eribon (Aynê, 2021): assim como a obra anterior, o autor após perder o pai, retorna à sua cidade natal a fim de compreender os movimentos sociais, que marcaram e determinaram a existência de seu pai e o tornaram um homem intolerante, preconceituoso e cheio de manias, que se justificam pelo meio ao qual ele pertencia. O contexto apontado pelo autor se aproxima muito do Brasil, levando o leitor à reflexão e a empatia.
  • A invenção da solidão – Paul Auster (Companhia das Letras, 1999): livro de memórias e ensaios, onde o autor reflete sobre sua relação com o seu pai e posteriormente, a relação que está desenvolvendo com o seu filho. O autor demonstra que as vivências de seu pai o transformaram em um homem solitário e ausente, onde essas características significavam uma forma de defesa contra as dores do mundo. Livro sensível e muito reflexivo.

Obras de ficção:

  • Pais e filhos – Ivan Turguêniev (Companhia das Letras, 2021): romance clássico do escritor russo, onde ele aborda as mudanças de paradigmas de uma geração para a outra, construindo um núcleo de personagens profundos que vão defender seus posicionamentos arcaicos ou modernos de forma visceral. As dicotomias apontadas pelo autor serão um forte motivo de separação e desentendimento entre pais e filhos. Belo romance e que envelheceu bem, trazendo ainda hoje, no nosso contexto muitas reflexões e análises profundas.
  • A mulher ruiva – Orham Pamuk (TAG, 2020): romance contemporâneo, que faz um diálogo entre a tragédia de Sófocles e o pensamento islâmico na Turquia, através de um protagonista complexo, que mesmo tentando não errar, se vê preso em uma trama de acontecimentos que não vai terminar bem. Em busca do pai, o personagem conhece uma mulher ruiva que vai ajudá-lo a encontrar esse homem, porém, às custas de muito sofrimento. Livro bastante reflexivo, que nos leva a pensar sobre o destino e as nossas escolhas de vida.
  • O Rei Lear da Estepe – Ivan Turguêniev (Editora 34, 2021): inspirado na obra de Shakespeare, nesta novela curta, porém impactante, conhecemos uma família onde o pai é um proprietário de terras e está sempre fazendo as vontades das três filhas. Um dia, ele sofre um acidente e fica incapacitado de trabalhar no campo, como sempre fez. Suas filhas o convencem a dividir as terras entre elas e as consequências disso são muito tristes. Livraço que permanece com o leitor muito tempo após a leitura.
  • Os irmãos Karamázov – Fiódor Dostoiévski (Editora 34, 2012): último romance do escritor russo, conta a história da família Karamázov, onde o patriarca é assassinado por um dos filhos. O romance policial fica em segundo plano porque o que será abordado ao longo do texto são as relações entre esses irmãos e o pai: ciúmes, inveja, ambição, medo e o desejo de ser amado pelo pai são os temas desse classicão da literatura russa.
  • A leste do Éden – John Steinbeck (Penguin, 1992): romance histórico, com drama familiar, conta a história das famílias Trask e Hamilton, onde o tema principal são as relações entre pais e filhos, principalmente sob o aspecto da rejeição, que leva a tantas desgraças no mundo. O autor reflete sobre o mito de Cain e Abel, através de seus personagens, mostrando que a história bíblica, é a história de todos nós, que se repete ao longo das gerações. Livro maravilhoso, que merece ser mais comentado pelos produtores de conteúdo literário.

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