crítica

Rinha de galos – María Fernanda Ampuero

Parece assustador quando lemos a quarta-capa ou as orelhas de Rinha de galos (Moinhos, 2020). E sim, não se engane: é assustador, escatológico e muito pesado, com muitas cenas gráficas de violência. E a partir daí você leitor, se perguntará: mas por que ler um livro assim, tão terrível, quando busco na leitura algo sublime, que me leve para lugares incríveis e felizes? E eu te digo: porque a vida é triste e cheia de misérias e violências sobre as quais nem imaginamos. O ser humano, infelizmente é cheio de camadas de brutalidade e quando exposto às mais diversas dificuldades do mundo, termina por colocar em prática ações aterrorizantes, dando vazão a tudo de ruim que ele pode guardar dentro de si. Wilke Collins já dizia que sentia mais medo do vivos que dos mortos, que o ser humano é mais perigoso que os seres de outros mundos e neste livraço da María Fernanda Ampuero temos a prova cabal dessa afirmativa.

O livro apresenta ao leitor 13 contos assombrosos de violência real, principalmente contra a mulher e contra crianças. Logo no primeiro conto, Leilão, já somos açoitados por uma situação insólita de uma vida difícil e cruel, sob a qual é impossível abstrair-se e fingir demência. Podemos pensar, dentro da nossa bolha, que isso não tem condições de acontecer. Entretanto, basta ler com atenção aos jornais ou ligar a TV na hora do programa Cidade Alerta, que tudo o que foi narrado visceralmente no conto está lá, na nossa cara, para percebermos que existe sim uma miséria humana e pessoas vivendo em situação de calamidade bem debaixo do nosso nariz.

Seguindo para os próximos textos, a autora não poupa o leitor e a cada história contada, ela nos leva para dentro dos ambientes onde estão aqueles personagens e sua escrita é tão potente que conseguimos facilmente visualizar as situações e a imundície dos lugares, que refletem a sujeira interior dos personagens. A descrição escatológica dos ambientes, que sim, provocam engulhos no leitor, são um reflexo da alma dos indivíduos que habitam esses espaços. Ampuero não faz essas conexões de forma óbvia ou forçada. É muito natural, seu texto é fluido e direto ficando o leitor responsável por inferir esses significados tão contundentes que ela coloca em cada conto. Questionada em entrevista sobre a sua escrita tão violenta, ela responde:

Acho que escrevo como escrevo porque estou furiosa, porque a violência contra os mais fracos, principalmente meninos, meninas e mulheres, me enche de raiva e não sei como lutar para tornar visível toda essa violência. Escrevo para gritar, acho. Escrevo gritando”.

Dessa forma, percebemos que a autora necessita dar voz às pessoas que não podem se expressar, seja por sua condição precária de vida, seja por seu analfabetismo funcional, seja por medo, por angústia ou por não saber onde pedir ajuda. Os efeitos da desigualdade social e econômica no Equador e todas as vicissitudes oriundas do colonialismo são marcadas nos textos de Ampuero. O leitor consegue ter um panorama geral do que é ser pobre nesse país e não ter a quem recorrer pela dignidade da pessoa humana. A relação dos personagens com a educação e com o trabalho são pontos fortes da obra. As dificuldades financeiras também são abordadas de forma contundente, mostrando ao leitor o dia a dia de pessoas comuns, que trabalham muito para ter o pão de cada dia e que ainda assim, sofrem diversas violências tanto em casa quando fora dela.

Essas violências não se resumem à sua forma física. Mas é também praticada de forma verbal ou apenas com o olhar, aquele olhar condenatório ou de extrema comiseração, que incomoda e não resolve o problema de ninguém. Avaliando essa situação, enxergamos em nós mesmo alguns personagens que fecham os olhos para essas violências e aprendem a conviver com elas no cotidiano, desprezando qualquer tipo de ação eficaz que possa ajudar essas pessoas a sair do limbo em que vivem. Mais uma vez questionada em entrevista sobre Rinha de Galos, Ampuero diz:

Quando me perguntam porque Rinha de Galos é um livro tão violento, peço que assistam aos noticiários ou leiam os jornais. Não chego nem a tocar na superfície dessa violência”.

Ao sermos confrontados com essa declaração e após a leitura de Rinha de Galos, a pergunta que fica é até onde o ser humano é capaz de chegar. E não apenas isso, mas como barrar a violência? Quais as atitudes pontuais que podemos adotar diante de algo tão difícil de classificar e de impedir? Até que ponto a tomada de consciência nos permite agir? Aqui mesmo no Brasil, temos casos bastante parecidos com os narrados por Ampuero e diante de um país tão grande, como podemos ajudar as pessoas a não passarem por isso? É complicado, mas nos faz sair da nossa zona de conforto e ao menos nos faz pensar sobre o assunto.

Sempre nos deparamos com todos os tipos de violência. Entretanto, tendemos a minimizar a violência psicológica. Muitas vezes, justificamos algumas frases agressivas dirigidas às crianças principalmente, como uma forma de educar, de ensinar o que é certo e o que é errado. Mas até que ponto essa agressividade verbal é eficiente? Nos contos Nam, Cristo e Luto, Ampuero nos mostra que esse tipo de discurso não ajuda a educar ninguém. O efeito dele é totalmente reverso: a criança não se sente amada pelos pais e passa a buscar esse amor, essa aprovação em outros lugares, principalmente no sexo.

Outra justificativa muito utilizada para a violência verbal é a intenção de fortalecer o indivíduo para a vida. Com uma noção distorcida da realidade, muitos pais, vítimas também de violências, adotam essa postura, acreditando que se fizer o filho sofrer dentro de casa, ele será mais resistente aos reveses da vida lá fora. O que esses pais não sabem, é que dessa forma eles estão perpetuando o ciclo da violência e expondo esse indivíduo a dores que poderiam e deveriam ser evitadas. O ambiente doméstico deveria ser um lugar de aconchego, de paz, de tranquilidade, onde essa pessoa poderia se energizar de forças positivas para seguir a diante e não desmoronar nas primeiras dificuldades da vida externa.

Diante de tanta dor, é comum que os cidadãos equatorianos desejem sair do país e tentar a vida nos Estados Unidos ou na Europa. É um movimento de diáspora muito comum na América Latina porque esses indivíduos acreditam que o problema está no lugar onde vivem, nas desigualdades, na falta de oportunidades, na corrupção e na imundície em que vivem. Entretanto, todos eles carregam dentro de si as marcas da violência, principalmente as da violência doméstica, que grudam nas entranhas do ser e não se dissipam apenas com uma mudança de ambiente.

 Segundo a autora, o livro se trata da perda da inocência. E sim, esta é mais uma chave de leitura para essa antologia de contos que conversam entre si. Acompanhamos muitas adolescentes, pessoas jovens e até mesmo velhas, descobrindo uma perversidade humana que até então não compreendiam. E essa quebra da inocência e da confiança em um mundo melhor está em todas as histórias narradas em Rinha de Galos. Ampuero disse que seu livro é visceral pois “o coração é uma víscera”. E não há descrição melhor para o seu estilo narrativo. Ela realmente se deixa gritar.

Ampuero nasceu em Guayaquil, no Equador, local onde se passam suas narrativas. Porém, ela parte do local para o universal, no sentido de contar histórias que podem acontecer em qualquer lugar do mundo. Fiz algumas conexões de seus contos com séries e filmes para provar isso. Começando pelo insólito Leilão, que faz um diálogo com o filme norte-americano O Albergue, que tem um enredo parecido. O conto Monstros, conversa bastante com uma das séries de maior sucesso do ano passado, Maid. Aqui temos a violência verbal e suas consequências para o indivíduo como tema em comum. Os últimos contos do livro, Luto, Ali, Coro e Cloro conversam demais com o filme brasileiro Que horas ela volta? protagonizado por Regina Casé e que discute o serviço doméstico nos países em desenvolvimento, como o Brasil e o Equador.

Esse conjunto de contos, que tratam sobre o serviço doméstico são muito pungentes e verdadeiros. Talvez os que se aproximam mais de nós leitores comuns, que não estamos expostos às violências narradas nos primeiros contos. Entretanto, Ampuero nos aponta de forma contundente como velhos hábitos, há muito ultrapassados, são cruéis e perceptíveis às pessoas que trabalham na casa dos outros. A relação ambígua entre patrão e empregado, a velha mania de dizer que a empregada é quase da família, enquanto é explorada de todas as formas e excluída de todo o contexto da casa. Essas pessoas são silenciadas o tempo todo, não podem expressar opinião e são descartadas quando se tornam “obsoletas” ou “desagradáveis” aos patrões. A desumanização do empregado doméstico ainda é um tema tabu, cheio de arestas e também é um tema incômodo, que as pessoas preferem não falar sobre.

Por fim, mas não menos importante, o conto que fecha essa antologia, A Outra, retrata a submissão da mulher ao marido. Tema muito explorado em vários veículos de comunicação e que, parece esgotado ou até mesmo encerrado, pois, pasmem, muitas pessoas acham que nenhuma mulher no mundo vive essa situação de subalternidade ao homem. Ledo engano. Muitas mulheres vivenciam esse drama cotidianamente e sofrem muito por isso. Maridos que exigem tudo e não doam nada, que não participam da criação e da educação dos filhos, que culpam suas esposas por todas as mazelas da casa, que exigem tudo organizado e limpo, além de escolherem a lista de compras a partir de seu gosto pessoal, excluindo a mulher e os filhos dessa dinâmica. Uma casa regida por um déspota, onde a mulher não passa de uma escrava e os filhos de acessórios para descontar o ódio do patrão, do trânsito, das mazelas do dia a dia. Infelizmente, se assistirmos com atenção aos noticiários, ao canal ID, lermos os jornais e alguns livros de true crime, constataremos que esta é uma situação catastrófica e que parece não ter fim nunca. As pessoas ainda precisam muito de diálogos, de educação e de livros como Rinha de Galos.

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