crítica

Rita Hayworth e a Redenção de Shawshank – Stephen King

Esta é mais uma daquelas histórias do King que muitos leitores não devem estar reconhecendo por esse nome, mas que, certamente, já tiveram algum contato com ela: trata-se da novela que deu origem ao filme Um sonho de Liberdade, onde temos um narrador que é realmente um assassino confesso, mas que vai nos contar a história de um colega da prisão de Shawshank que foi condenado injustamente e que passou trinta anos cumprindo uma pena injusta, de forma totalmente diferente dos outros presidiários.

Red, nosso narrador, tenta ser imparcial, mas, sabe-se que na Literatura não podemos confiar totalmente em um narrador em primeira pessoa, porque ele sempre vai ocultar algumas coisas, florear outras e até mesmo ter aqueles lapsos de memória tão comuns a todos nós. Porém, a história de Andy Dufresne é fascinante e nos leva à reflexão sobre temas muito atuais e necessários como a justiça, a credibilidade do tribunal do júri, o sistema carcerário, a situação degradante dos presidiários com enfoque nas prisões norte-americanas, mas que servem de microcosmo para o mundo inteiro e a desumanização da pessoa através da institucionalização. Ok, pode estar ficando confuso, mas é simples: King mais uma vez joga luz nas pessoas invisiblizadas, naqueles que ninguém quer ver ou que julga por estereótipos pré-concebidos. Ele vai humanizar aqueles que são considerados párias e que não merecem compaixão ou empatia, de acordo com as regras sociais. E é exatamente isso que torna essa história tão fascinante.

Ambientada entre as décadas de 1940 a 1970, a novela conta a história de Andy, um banqueiro bem-sucedido do Maine, casado e feliz. Até que um dia, ele descobre que sua esposa o trai com o professor de golfe e, após uma briga feia ela e o amante aparecem mortos com quatro tiros cada um em uma cabana de propriedade do professor. Andy passa a ser o principal suspeito por não ter um álibi e por ter comprado uma arma compatível com o calibre das balas encontradas nos corpos poucos dias antes do infortúnio. Assim como em O estrangeiro de Albert Camus, Andy tem um comportamento imparcial e frio diante do júri, o que não ajuda em sua defesa. É preciso em suas respostas e não demonstra arrependimento ou dor pela perda da esposa. Dessa forma, ele é condenado a duas penas de prisão perpétua, sem direito a condicional.

Chegando ao presídio de Shawshank, Andy passa por várias situações degradantes, começando pela comida que pode ser comparada a uma lavagem e isso não é uma criação literária ou exagero do autor porque basta assistir aos documentários da Discovery sobre as prisões do mundo inteiro para comprovar que as licitações de alimentação para os presidiários são feitas de forma corrupta e que os diretores das prisões não se importam com a qualidade do alimento que os detentos terão. Basta que a empresa ofereça um bom preço e uma boa propina para ser contratada. Além disso, ele também apanha bastante dos colegas que têm alguns benefícios dentro do presídio, passa por todos os tipos de violência e abusos até conseguir se impor através do seu trabalho anterior: ele sabe lavar dinheiro. E essa habilidade é muito conveniente para os diretores do presídio.

Norton, o chefe de Shawshank, se diz muito temente a Deus, anda para cima e para baixo com uma bíblia debaixo do braço, pregando o evangelho e dando lições de moral nas pessoas. Porém, ele é o exato oposto de um cristão: pratica atos de corrupção, chantageia as pessoas, espanca quem atravessar o seu caminho, prende os detentos por dias e mais dias na solitária por motivos pífios, mata aqueles que se tornam um estorvo em sua vida, dentre outros crimes éticos e morais que ele pratica todos os dias com a bíblia debaixo do braço. Mais uma vez, temos uma crítica contundente do autor a respeito da hipocrisia humana: não basta rezar, é preciso praticar o cristianismo. E em momento algum está escrito na Bíblia que o homem tem o direito de castigar ou de julgar com tanta severidade as outras pessoas. Até mesmo porque, “atire a primeira pedra quem nunca errou” e todos nós praticamos muitos erros para estar em condições plenas de julgamento.

Essa questão de julgar também tem um peso muito grande nessa obra devido à condenação de um inocente. Ao longo da trajetória de Andy, temos a certeza com provas de que ele é realmente inocente do duplo homicídio. O problema levantado pelo autor, que infelizmente ainda é bastante recorrente na sociedade do século XXI, é a parcialidade do tribunal do júri e as provas circunstanciais apresentadas em alguns casos graves e que condenam pessoas. Andy não teve uma pena de morte porque no Estado do Maine não há pena de morte. Entretanto, em muitos estados norte-americanos a pena de morte ainda vigora e assim, em casos de homicídio qualificado, esta é a pena máxima. Talvez, em um primeiro momento, faça sentido condenar um assassino à morte. Porém, trata-se de um ser humano, como eu e você e, se essa pessoa fosse alguém próximo, como um filho ou o pai de um de nós, desejaríamos algum tipo de clemência para ele, pois, o veríamos com mais humanidade e com mais empatia. Dessa forma, porque não vemos todas as pessoas assim? É isso que o autor quer abordar com essa e tantas outras histórias que ele escreveu sobre o tema.

Além disso, há ainda o conceito pregado de que a prisão teria a função de reabilitar o indivíduo para um retorno à sociedade. Mas, na verdade sabemos bem que isso é uma grande falácia: ninguém sai reabilitado da prisão. Muito pelo contrário: saem de lá ou institucionalizados ou piores do que entraram. Poucas são as prisões do mundo que cumprem a sua função de acolhimento e respeito ao ser humano no sentido de dar a ele as condições mínimas de salubridade, de educação, trabalho, garantindo a dignidade da pessoa humana. Na maior parte das prisões, o indivíduo entra ali e passa por tanta coisa, por tanta maldade, que ele ou não quer sair de lá ou quando sai, não consegue mais viver em sociedade como antes. Na novela de Stephen King, temos o exemplo de Brooks, um senhor que matou uma pessoa na sua juventude e foi condenado à prisão em Shawshank. Passou lá a maior parte de sua vida. Um dia, seu recurso foi aprovado e ele posto em liberdade. O Estado lhe deu um lugar para morar e um trabalho de empacotador de supermercado. Acontece que nessa fase ele já era um velho e não sabia mais como viver no mundo. Sentia-se humilhado e invisível aos olhos dos outros. Não tendo coragem para cometer outro crime e voltar para a prisão, ele tira a própria vida, mostrando que não há mais lugar para ele no mundo fora dos muros de Shawshank.

Essa institucionalização das pessoas acontece de forma gradual e se perpetua no indivíduo: seguir regras rígidas de comportamento, usar uniforme com um número de identificação, comer a mesma coisa todos os dias e no mesmo horário, pedir permissão para ir ao banheiro a cada quarto de hora, devido às pausas do serviço neste período, desconhecimento total do mundo externo – o detento não sabe o que está acontecendo lá fora, não tem contato com o mundo real e dentro da prisão ele vive uma vida paralela, onde ele é alguém ao menos para os colegas. Lá fora, ele não é ninguém. Isso acontece também com Red, quando consegue a liberdade provisória. Nesse momento ele já é um velho, que desejava dialogar com o jovem que foi um dia e que cometeu um assassinato estúpido que destruiu a sua vida. A institucionalização do personagem fica evidente assim que ele sai da prisão: simplesmente não sabe o que fazer e como se comportar lá fora. Sente falta de ser o homem que consegue as coisas para os colegas de cela. É triste e nos faz pensar sobre muitos aspectos do nosso sistema carcerário vigente.

Essa institucionalização da pessoa humana é um dos temas principais da série Orange is the new black, disponível na Netflix. A trama se desenvolve em um presídio feminino, onde conhecemos várias detentas das quais aprendemos a gostar. Muitas delas estão cumprindo pena por terem feito serviço de mula, outras por vício em drogas, muitas por assumirem a posse de alguma substância que era de seus parceiros, prostituição, homicídio em segundo grau, furtos, estelionato e tantos outros crimes que poderiam ser perdoados após um tempo de correção prisional. O problema é que quando essas pessoas recebem a condicional elas não conseguem um emprego que as sustente, muitas vezes seus familiares as rejeitam, seus cônjuges já saíram de casa levando os filhos, a vida do lado de fora torna-se muitas vezes insuportável e elas acabam reincidindo no crime para voltarem à prisão. Muitas delas, fazem isso por não terem o que comer. Esse preconceito arraigado na sociedade, como tantos outros, destroem vidas de pessoas que erraram, pagaram por seus erros e deveriam ter uma oportunidade de reintegração social.

É um tema polêmico e por isso Stephen King merece todos os louros pelo trabalho que consegue fazer através de personagens humanos, nem santificados, nem estereotipados e nem rasos. São personagens complexos, que erram, fazem sim coisas hediondas, mas mesmo assim, não perdem a sua humanidade. Fazendo mais uma referência àquela personagem de Pantanal que já citei aqui no site, a Guta, personagem complexa e cheia de camadas para pensarmos, em uma de suas últimas cenas na novela, ela diz ao irmão quando ficam sabendo a verdade sobre seu pai: “o papai foi uma boa pessoa, que sofreu muitas coisas e se perdeu pela vida”. Ao escutar isso, me opus imediatamente à sua fala porque o pai deles foi um dos maiores violões das novelas. Porém, quando tiramos a lupa do maniqueísmo dos olhos, conseguimos ver que sim, ele foi um personagem horrível, covarde, cometeu vários crimes, mas, ainda assim, foi pai, foi um homem de família e amava aquelas pessoas à sua maneira. Isso mostra que qualquer um de nós pode se perder pela vida em algum momento, por alguma fatalidade ou mesmo por escolha. Mas, ainda assim, continuaremos sendo os mesmos, pessoas complexas, capazes de amar e odiar nas mesmas proporções.

Quando o vilão da história é alguém muito próximo, temos dificuldades em julgá-lo com a mesma severidade que usaríamos para julgar um estranho e isso mostra a nossa humanidade e também os dois pesos e duas medidas que um tribunal do júri usa para julgar as pessoas. Andy foi condenado injustamente, mesmo quando todas as provas circunstanciais o acusavam severamente. Mas, em um dado momento, um personagem poderia tê-lo ajudado e feito justiça. Porém, ele se recusou e isso deu munição suficiente para Andy conseguir escapar dos muros de Shawshank. Ao contrário de seus colegas, ele não se permitiu institucionalizar. Continuou sonhando com a sua liberdade e com o dia em que poderia ver o mar do Pacífico e viver em um lugar sem memória. E é aqui que entra a Rita Hayworth do título: ela é o sonho de liberdade. Uma grande metáfora para uma fuga extraordinária da ficção literária e que por mais errado que seja, torcemos para dar certo e vibramos quando ele consegue.

A condenação de Andy beneficiou o promotor, que conseguiu uma promoção. Foi útil para a diretoria do presídio, que durante 30 anos pode fazer um pé de meia com o dinheiro da corrupção. Deu ao tribunal do júri a sensação de dever cumprido e à sociedade, uma falsa sensação de justiça. O problema é que, o verdadeiro assassino estava solto, curtindo a vida e praticando outros crimes por aí. Dessa forma, pode-se pensar que “quem tem apenas aspirações individuais jamais entenderá a luta coletiva” e é justamente por isso que a nossa sociedade caminha a passos de formiga, permanece girando em círculos, sem sair do lugar. A institucionalização não ocorre apenas no sistema prisional. Ela acontece o tempo todo nas empresas, nos lares autoritários, nas escolas engessadas e na vida dos indivíduos hedonistas que se recusam a olhar para o lado e enxergar o óbvio. E faço minhas as palavras da Jéssica Mattos: “não adianta ler os livros, assistir aos filmes e não entender nada”. Nossa missão é compreender a moral da história e fazer a nossa parte para que trajetórias como a de Andy não se repitam nunca mais.

Convido a todos os leitores desse site a conhecerem a literatura de Stephen King. Muitos não o leem por ser um best-seller e por preconceito literário. Mas, o escritor tem a capacidade de lançar luz na escuridão, de mostrar ao leitor os problemas que existem na mente das pessoas complexas e que são consideradas párias sociais. Ele dá voz aos esquecidos, dá o protagonismo aos excluídos e superpoderes aos miseráveis que vivem presos em seus corpos infantis por diversos motivos evolutivos. King utiliza da magia, do transcendental, do horror e da fantasia para discutir política, corrupção, pena de morte, sistema carcerário, amizade, bullying, exclusão, hipocrisia, fanatismo, racismo, machismo, violência contra a mulher, saúde mental, alcoolismo e muitos outros temas atuais e necessários à nossa compreensão. Recomendo muito essa novela e a adaptação dela, sob o título de Um sonho de liberdade, disponível na HBO.

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