literatura

Robinson Crusoe – Daniel Defoe

Mesmo aqueles que nunca leram Robinson Crusoe (Ubu, 2021), conhecem ao menos a clássica história de um homem inglês, que passou 28 anos em uma ilha deserta, após um naufrágio onde ele foi o único sobrevivente. Adotado nas faculdades de economia, como uma forma de mostrar aos alunos como utilizar os recursos disponíveis e também fartamente estudado nas faculdades de letras por ser considerado o primeiro romance inglês, esse clássico traz inúmeras chaves de leitura possíveis e ainda hoje, em 2023, se mantém atual, universal e atemporal.

Para entendermos bem a sua grandeza, é preciso nos localizarmos no tempo e no espaço onde ele foi escrito. Daniel Defoe foi um prolixo escritor inglês do século XVIII. Publicou além de romances e contos, ensaios de não-ficção, que provocaram rebuliços na corte. O autor teve o privilégio naquela época de estudar em uma das escolas religiosas, que possibilitavam a educação em um nível superior às pessoas mais abastadas. A família de Defoe era protestante, mas o escritor tinha sérias divergências com a religião anglicana, predominante na Inglaterra.

O século XVIII ficou conhecido na Europa como o “Século das Luzes”, devido às ideias iluministas que fervilhavam naquele tempo.:

O século XVIII foi palco de um movimento intelectual na Europa chamado de Era da Razão, Era das Luzes ou Iluminismo. Razão e luz aparecem como sinônimos em referência à capacidade humana de conhecer, compreender e julgar. Como a ideia básica iluminista estava a confiança na razão como instrumento de crítica das questões da sociedade e da natureza” (SILVA, A. M., 2006, pág. 166)

Com essa mudança de paradigmas, muitas transformações começaram a ocorrer no continente, como o surgimento da burguesia (atual classe média), o avanço das viagens marítimas e o racionalismo, o que consequentemente, gerou uma demanda maior de novidades do mercado literário. Até esse ponto, a Inglaterra contava com publicações de poemas e peças de teatro locais. As demais narrativas vinham da França e não dialogavam com o público inglês, que possuía as suas próprias idiossincrasias.

Dentro dos meios de produção e da riqueza gerada por eles, essa classe média viu no racionalismo científico e na tecnologia derivada dele os instrumentos para aumentar a sua prosperidade, e ela queria ficar a par das novidades nessas áreas. A demanda por informação gerada pelo crescente número de leitores dessa camada social levou ao aparecimento dos primeiros jornais e revistas e, é claro, dos primeiros jornalistas, como Joseph Addison, Richard Steele e Daniel Defoe. Logo, esse público também buscaria aprimorar a sua cultura, o que levou ao aparecimento de um novo gênero literário: o romance” (SILVA, A. M., 2006, pág. 167)

Para entendermos o que é chamado aqui de romance (novel), precisamos da teoria literária, que define o termo e aponta quais as características que um texto precisa ter para ser chamado de romance. No idioma inglês, há uma diferença entre o romance e novel, o que fica confuso para nós brasileiros, pois os dois termos são traduzidos pela palavra romance. Entretanto, há diferenças entre eles:

Romance:

  • Termo originário do latim romanice (narrativa na língua popular);
  • O herói é um homem de atributos fantásticos;
  • Não apresenta preocupação com a descrição da realidade;
  • Presença de elementos fantásticos ou extravagantes;
  • Seus temas tratam de aventuras, feitos heroicos ou fantásticos e da presença do mítico.

Novel:

  • Termo originário do italiano novella (conto ou narrativa de eventos);
  • O herói é um homem comum;
  • Apresenta cuidados na descrição da realidade;
  • Presença de elementos da vida cotidiana;
  • Seus temas tratam de assuntos do dia a dia, com foco em questões sociais ou de cunho pessoal.

Como podemos ver, o romance mostra o mundo distante de aventuras e improbabilidades. O novel, por sua vez, mostra o nosso mundo e as questões levantadas pelo relacionamento do homem com o seu meio” (SILVA, A.M., 2006, pág. 174)

Ao lermos Robinson Crusoe, todas as características atribuídas ao gênero novel, estão presentes na prosa de Defoe, que foi inspirada em uma história real, de Alexander Selkirk, abandonado em uma ilha na costa chilena em 1704, resgatado 5 anos depois. Ao retornar à Inglaterra, suas aventuras despertaram o interesse de muitas pessoas. O náufrago foi entrevistado por Richard Steele e seus depoimentos coadunam com o romance de Defoe e as reflexões de seu protagonista, sendo que todas elas refletem o espirito da época, tais como a superação da tristeza e da solidão por meio da razão, da moderação e do exercício físico vigoroso.

Dessa forma, o escritor ganhou a fama de ser o precursor do romance inglês. Para alguns críticos, esse posto pertence a Samuel Richardson, com o seu clássico Pâmela, porém, este é um romance epistolar, voltado para a educação das mulheres, com uma proposta de vencer as tentações em prol das virtudes, ao passo em que Defoe descreve cenas do dia a dia de Crusoe, junto às suas reflexões filosóficas, aproximando-o das pessoas comuns e do homem iluminista, que busca a razão como meio de sobrevivência. Alguns pontos da estrutura do texto de Defoe são importantes para a classificação de seu livro como o precursor do gênero novel:

Escrito em primeira pessoa para representar as mudanças na personalidade do protagonista ao longo da trama, Robinson Crusoe é uma obra que exemplifica os elementos que viriam a caracterizar o romance desde os seus primeiros momentos:

  • O relato é apresentado como o registro verdadeiro e fiel da vida de Robinson Crusoe. Essa intenção é apresentada no prefácio do romance;
  • Protagonista é um homem comum;
  • A narrativa é feita por meio de uma linguagem coloquial, por vezes descuidada;
  • Há um grande cuidado com a descrição de detalhes. Em várias partes do livro, Crusoé informa as coordenadas do barco, a quantidade de dinheiro que possuía, seus pertences e outros detalhes” (SILVA, A.M., 2006, pág. 177)

Apresentando todas essas novidades para a época, Robinson Crusoe foi um dos romances mais vendidos no século XVIII e inspirou uma porção de autores na posteridade. Defoe foi bastante corajoso em sua empreitada no romance porque em seu tempo não existia a possibilidade de mobilidade social ascendente na Inglaterra e o seu protagonista, logo no início da história, desafia o seu pai, afirmando que venceria por seus próprios méritos:

Perguntou-me que razões eu teria, mais que o simples pendor à errância, para deixar a casa paterna e minha terra natal, onde eu bem poderia ter facilidades de início, com uma perspectiva de propiciar a meu destino, pela dedicação ao trabalho, uma vida de tranquilidade e prazer. Disse-me que só a homens de destinos desesperados, por um lado, ou com a ambição de destinos superiores, por outro, cabia expatriar-se em busca de aventuras, para ascender pela própria audácia e se tornarem famosos por realizações à margem do caminho comum; que ou essas coisas estavam muito acima ou muito abaixo de mim; que minha situação era média, ou o que pode ser chamado de patamar mais alto das classes baixas, que ele já constatara, por longa experiência, ser a melhor do mundo, a mais adequada à felicidade humana, não exposta às desditas e às asperezas, à labuta e aos padecimentos da parte da espécie às voltas com os trabalhos braçais, como também não importunada pelo orgulho, a opulência, a ambição e a inveja das camadas mais altas” (DEFOE, 2021, pág. 14)

Essa conversa até parece retirada de romances atuais ou de séries de TV. Ainda hoje é possível que o sentimento e o pensamento de Crusoe encontrem eco na atualidade, onde algumas famílias querem determinar o que o indivíduo será ou fará profissionalmente falando. Em algumas ocasiões, até mesmo a vida pessoal dos filhos é decidida por sua família. A insubordinação do protagonista logo no início da narrativa cativou os leitores, que acreditavam na possibilidade de crescimento através do esforço e do mérito, algo muito pertinente na Era das Luzes.

A partir do momento em que Robinson sai da Inglaterra e segue viagem, muitas reviravoltas acontecem até que ele chegue à ilha deserta. Lá o protagonista é obrigado a se valer de seus próprios recursos para sobreviver durante os 28 anos que passará isolado. Essas peripécias constituem a parte que mais agrada aos leitores, que são as aventuras. Há muitas adaptações do romance para jovens e crianças, com foco apenas na parte de aventuras, desconsiderando o lado filosófico que a obra apresenta. Os métodos e soluções encontradas pelo protagonista também são muito explorados em faculdades de economia, como uma forma de educar e ensinar a lidar com recursos parcos.

Uma das características fundamentais desse romance são os conhecimentos prévios de Crusoe. Essas experiências vão aparecendo antes do naufrágio e elas são muito importantes para a verossimilhança da obra, no sentido de que servirão ao herói posteriormente para a sua sobrevivência na ilha. Além desses conhecimentos prévios, há também a providência divina, que faz parte do texto de forma intrínseca. Defoe discute fé, religião e o sobrenatural de forma humana, aproximando-se do leitor comum. Em várias situações, Crusoe é abençoado de alguma forma, permitindo que ele consiga sobreviver às intempéries de maneira mais simples. Uma dessas providências é que, após acordar isolado no navio naufragado, este não havia afundado. Crusoe pode retirar do barco tudo o que estava lá, como sementes, farinha, cereais, dinheiro, bebidas, cordas, madeira, pólvora, armas, facas, roupas, fumo e até mesmo papel e tinta, com as quais ele vai nos contar essa história.

É impossível falar sobre Robinson Crusoe sem falar sobre religião porque ela faz parte do enredo. Ao se encontrar totalmente sozinho em um ambiente desconhecido, a fim de manter a sua sanidade, Crusoe começa a ler uma Bíblia que encontrou no navio. A partir dessas leituras, ele passa a conversar com Deus, apontando uma das características da religião protestante, que não exige um intermediário entre o homem e Deus. Uma de suas primeiras reflexões é voltada para o sentimento de culpa por ter desobedecido seu pai. Ele entende que o naufrágio foi uma espécie de castigo de Deus a esse arroubo de sua juventude, mostrando-lhe que seu pai tinha razão, até porque, na Bíblia diz que devemos honrar pai e mãe.

Os diálogos com Deus e consigo mesmo garantem ao protagonista a sua sobrevivência por mais de 20 anos, até que um dia, ele encontra pegadas na areia e se depara com uma tribo de índios canibais. Refletindo o pensamento inglês dominador, Robinson logo se escandaliza com a prática local e salva um dos indígenas que seriam mortos pela tribo, em um ataque calculado com muita racionalidade por parte do herói. Após libertar o escravo, ele faz como todos os colonizadores: afirma que ali é a sua ilha, que ele é o chefe e que o índio é seu súdito. Imediatamente lhe dá um nome, Sexta-feira, em homenagem ao dia de seu encontro e passa a lhe ensinar o alfabeto inglês e a sua religião.

A partir da chegada de Sexta-feira até o dia do resgate dos dois, acompanhamos uma recriação da Inglaterra na ilha deserta, com os seus costumes, hábitos e referências. Para o leitor contemporâneo, é difícil ler o texto sem criticar o colonialismo e a forma como o autor explora a relação entre Crusoé e Sexta-feira, entretanto, ele estava escrevendo para as pessoas do seu tempo, sendo todos esses acontecimentos e ações comuns aos ingleses, assim como corrobora a professora Jane Gleeson-White:

O romance de Defoe foi escrito em uma época em que as viagens marítimas eram parte essencial da vida. Ingleses puritanos fundavam colônias nos Estados Unidos, e viagens e comércios marítimos eram notícias diárias. Por trás do romance está a história da conquista da América do Sul pela Espanha e Portugal e da colonização das Antilhas pela Inglaterra, e ela é repleta de referências a rotas de comércio e ao tráfico de escravos vindos da África, além de tabaco, rum e melaço trazidos de lá. A Espanha chegou até a estender a sua Inquisição aos territórios americanos, e Crusoe teme a Inquisição nos “Brasis” se ele se revelar não papista, ou seja, protestante” (GLEESON-WHITE, J. 2010, pág. 41)

Até os dias atuais, Robinson Crusoe ainda é uma referência forte em relação aos romances que se passam em ilhas desertas, influenciou uma geração inteira de escritores e permanece no imaginário popular através de filmes, peças de teatro, desenhos animados e histórias em quadrinhos. Essas histórias fascinantes, que marcam uma época e nunca são esquecidas, constituem os clássicos que todos deveriam ler um dia, se não por gosto, ao menos como forma de conhecer o original que influenciou tantas outras obras populares que conhecemos e admiramos. Ainda assim, para mim foi um prazer fazer essa leitura e conhecer mais um clássico universal da literatura mundial.

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