vida de leitor

Sagas familiares: porquê gostamos tanto de acompanhá-las?

Cinco indicações espetaculares para os amantes do gênero

Qual o leitor, em algum momento da vida não se rendeu a uma boa saga familiar? Elas são tão queridas junto ao público leitor por reunirem histórias sobre várias gerações de uma família e ao mesmo tempo narrarem algum fato histórico marcante daquela ambientação. Dessa forma, são livros sensíveis, mas não datados ou irrelevantes: distraem o leitor e mostram todo um contexto histórico que provocou a queda ou a ascensão daquela família específica. Saga é uma palavra de origem nórdica, que significa “o que é dito, contado, narrado de forma oral sobre alguém” e assim, em meados do século XVIII, os ingleses começaram a utilizar o termo para classificar alguns romances que acompanhavam uma determinada família por várias gerações, podendo ser em um único volume ou em volumes seriados. O que os britânicos não esperavam é que esse gênero se popularizaria rapidamente, torando-se um clássico da literatura mundial.

Alguns desses romances se tornaram tão populares, que mesmo quem ainda não os leu, já ao menos ouviu falar sobre ou até mesmo conhece o seu enredo. É o que chamamos de inconsciente coletivo: ao ouvir aquele nome ou a trama do romance, logo o identificamos com a obra devido à sua popularidade. É o caso por exemplo de Duna, do escritor norte-americano Frank Herbert. Sabe-se que muitas gerações da família Atreides protagonizam essa saga de ficção científica, que une um contexto futurista, com temas políticos e uma forte discussão sobre o meio-ambiente. No Brasil, temos um clássico do gênero, que vive no nosso inconsciente coletivo, que é O tempo e o vento de Érico Veríssimo. Qualquer brasileiro já pelo menos ouviu falar sobre a família Terra Cambará, que tem a sua história contada junto à história do Rio Grande do Sul através de 7 volumes de livros.

As sagas familiares conquistam tantos leitores porque mesmo uma narrativa ambientada em um país no qual nunca estivemos, ou em uma cultura que não conhecemos, falam sobre os sentimentos humanos e as relações familiares dentro daquele contexto específico, tornando-se universais e atemporais. Assim, uma história que se passa na Coréia do Sul dialoga com outra que se desenvolve na Espanha, que também faz uma ponte com aquelas que acontecem na América Latina, que por sua vez, não fica longe daquelas ambientadas na Alemanha. O leitor se reconhece nos personagens, sejam eles filhos, pais ou avós porque os sentimentos humanos são os mesmos em qualquer lugar do mundo e em qualquer circunstância da vida.

Dessa forma, quando lemos sobre uma família dividida pela política, não estamos distantes da polarização que acontece atualmente em 2022 no Brasil. Quando acompanhamos a história de uma família tentando manter a sanidade em meio a uma solidão intensa, não estamos distantes de um dos maiores males do século XXI, que é o eterno sentimento de solidão, mesmo estando junto a várias outras pessoas que não compartilham das nossas assincrasias ou pensamentos individuais. Ao ver uma mulher apaixonada entregar-se ao seu amado e ser abandonada grávida em meio a uma guerra, tendo que se virar para criar o filho com dignidade, em nada estamos afastados do sentimento de desespero e de angústia dessa mãe. Todos nós conhecemos ao menos uma mãe solo atualmente que passa pelas mesmas agruras da personagem do romance.

Por outro lado, ao conhecer uma mãe desesperada, que vê seu filho se filiando a um grupo de guerrilheiros e lutando até o fim para que ele não seja morto e que tenha o mínimo de dignidade possível, a reconhecemos muito depressa em reportagens bastante atuais sobre mulheres que lutam bravamente para impedir seus filhos de serem sugados pelas milícias e pelo crime organizado mundo a fora. Além disso, os sentimentos maternos, por mais irracionais que sejam, são compartilhados por centenas de milhares de mulheres capazes de fazer qualquer coisa por seus filhos, mesmo quando eles são maus. Ao passo em que, quando acompanhamos uma família poderosa, que parece vazia de sentido no princípio e que pode não ter nada a ver conosco, não demoramos muito tempo para reconhecer naqueles personagens que até então odiávamos a humanidade. As lutas são as mesmas, os dilemas morais são iguais, as questões humanas são muito próximas das nossas. Esse é o segredo das sagas familiares: a identificação e a humanização dos personagens. A possibilidade de empatia e, o sentimento de esperança que deixam no final. Sim, mesmo aquelas que terminam em tragédia nos fazem refletir sobre nós e nos ajudam a pensar em um jeito melhor de viver e de fazer escolhas. Geram no leitor até mesmo um sentimento de gratidão ao perceber o quanto alguns povos sofreram com guerras e domínios de governos autoritários. É, não podemos negar que a Literatura é maravilhosa e proporciona experiências incríveis aos leitores.

Mas, o livro que me inspirou a falar sobre esse gênero tão querido por mim, foi A casa dos espíritos da chilena Isabel Allende. Li esse romance há uns dois anos e, a Jéssica Mattos está atualmente com um projeto de leitura da obra completa da autora em ordem cronológica. Assim, assistindo à sua live sobre esse classicão de saga familiar, e, relendo os meus trechos favoritos para escrever uma resenha para o site, tive o insight de falar sobre esse tema. Isabel Allende é uma exímia criadora de sagas familiares. Muitos de seus romances trazem histórias de famílias grandes e complexas, entremeadas com os dissabores vivenciados pelos chilenos ao longo dos anos de ditadura militar no país. Por isso, nada mais justo que começar as indicações de livros sobre o tema com ela.

  • A casa dos espíritos – Isabel Allende (Bertrand, 2017): Neste romance maravilhoso, acompanhamos a história da família Trueba, que tem como patriarca o inescrupuloso Esteban e como matriarca, a misteriosa Clara. Da união desse casal bastante diferente, nasceu Blanca, uma mulher desafiadora, que se apaixonou pelo capataz do pai e teve com ele uma filha, Alba. O leitor encontra nessa obra-prima três gerações de uma família dividida pela política, vivenciando anos turbulentos de luta e de tragédias, lidando com os sentimentos de ódio, ressentimento e desejo de vingança, porém, circundados por uma luz que nunca se apaga, a luz da esperança, do amor e do perdão. É uma obra capaz de provocar no leitor reflexões sobre a vida, sobre a política, a história da América Latina, tornando-se um texto universal através desse microcosmo criado pela autora. A narrativa é fluida, ágil, com personagens multifacetados, cheios de nuances e de idiossincrasias que fazem deles únicos e inesquecíveis.
  • Cem anos de solidão – Gabriel García Márquez (Record, 1977): Neste clássico de saga familiar, conhecemos os famosos Buendía, uma família cheia de Aurelianos, que confundem o leitor. Mas, o tema central desse romance é a solidão e a falta de entendimento dessa família, que se ama, mas ao mesmo tempo tem pouco em comum uns com os outros. Eles vivem em Macondo, uma cidade fictícia da América Latina, que vai sofrer com os golpes da ditadura e aos poucos, vai morrendo, sem perspectivas de futuro e diante da inércia de seus habitantes. Cem anos de solidão é um livro que fala sobre muitas coisas, principalmente sobre muitos sentimentos. O grande problema é que muitas pessoas quando o leem, se prendem em entender sobre qual Aureliano o autor está falando naquele capítulo. Mas, a ideia não é essa. A ideia é compartilhar com os Aurelianos o seu sentimento de solidão, de inadequação e de inércia diante da vida. Recomendo fortemente esse livro para todos.
  • Pátria – Fernando Aramburu (Intrínseca, 2019): Neste romance espetacular acompanhamos as amigas Mirem e Bittori, que se veem separadas pelo ETA, grupo de guerrilheiros que lutavam pela libertação do País Basco. O conflito principal acontece quando o marido de Bittori se torna alvo do grupo armado e o filho mais velho de Mirem se filia ao ETA. Esses eventos marcam para sempre a vida das duas famílias, gerando consequências funestas a todos. As relações conflituosas entre pais e filhos, o dia-a-dia do casamento, as diferenças sociais e econômicas entre as famílias, opiniões divergentes em relação à política e muito mais é narrado nessa obra-prima da literatura basca contemporânea.
  • Pachinko – Min Jin Lee (Intrínseca, 2020): Nesta saga familiar, acompanhamos a sul-coreana Sunja, uma mulher forte, valente, que sofreu muito com as questões do domínio japonês em seu país e com a imigração forçada dos coreanos ao Japão. Mas, apesar de tudo, sobreviveu à duas guerras mundiais, educou seus filhos com honradez e enfrentou com dignidade as adversidades da vida, construindo uma família disfuncional, mas muito amada e forte à sua maneira. O romance abarca um século da vida desses personagens, iniciando-se em 1900 e terminando no final do século XX, quando os salões de pachinko estão dominando o Japão e formando uma nova cultura, fazendo um contraponto com tudo o que aconteceu antes: um país marcado pela xenofobia, pela diáspora, pelas guerras e pelo colonialismo opressor. O romance trabalha muito os sentimentos humanos e as relações familiares; os dramas existenciais modernos e do pós-guerra; a questão do pertencimento e da expatriação. Com uma linguagem fluida e envolvente, Min Jin Lee dá uma aula de história sobre a colonização japonesa sobre a Coréia e nos mostra de forma humanizada os sentimentos mais sombrios que permeiam as mentes dos envolvidos nessa trama.
  • Os Buddenbrook – Thomas Mann (Cia das Letras, 2017): Neste clássico da literatura alemã, acompanhamos duas gerações da família Buddenbrook, marcada pela sua decadência iminente. O contexto histórico da época é um tanto nebuloso, pois, ele é ambientado na metade do século XIX e, os movimentos da época eram a revolução industrial, que estava chegando na Alemanha e a ascensão da burguesia. Havia ali muitos judeus, que estavam trazendo novos paradigmas para o país em termos de comércio e de inovações tecnológicas (se é que podemos chamar assim) e com isso, a classe da nobreza estava perdendo o seu prestígio e principalmente o seu poder de compra. Neste cenário, o autor constrói de forma magistral uma família que segue as regras sociais e ainda assim é muito infeliz. Os casamentos arranjados, a abnegação de escolhas pessoais em prol do nome da família, a herança de bens e de um trabalho que não permite uma opção de escolha, a anulação da pessoa humana e as relações familiares baseadas na hipocrisia, na falsidade e nas aparências. Mesmo parecendo odiosos e fúteis, os personagens de Mann nada têm de vazios: são multifacetados, complexos e extremamente humanos, a ponto de nos provocar não só empatia, como também identificação com os seus conflitos e dilemas morais. Livro espetacular e que deve ser lido e relido sempre.

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