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“Sentimentecas” – formação das nossas bibliotecas sentimentais e seu impacto em nosso dia a dia de leitores

Lendo Retorno a Rimes no mês passado, me deparei com um trecho onde Didier Eribon utiliza o termo cunhado por Patrick Chamoiseau, que são as “sentimentecas”, livros que nos acenam e nos ajudam a combater em nós mesmos os efeitos da dominação (ERIBON, 2021, pág. 203). Essa palavra ficou ecoando na minha mente porque eu fui buscar os títulos que compõem a minha sentimenteca e porque eles estão lá. Patti Smith também tem a sua sentimenteca e no seu livro Linha M, ela diz que “existem dois tipos de obras-primas. Existem as obras clássicas monstruosas e divinas como Moby Dick, O morro dos ventos uivantes ou Frankenstein. Depois há o tipo em que o escritor infunde uma energia viva em palavras que esfregam, torcem e penduram o leitor para secar. Livros arrasadores. Como 2666 ou O mestre e margarida. Crônica do pássaro de corda é um desses livros. Assim que terminei a leitura, fui imediatamente obrigada a ler o livro de novo. Uma das razões foi a de não querer sair da sua atmosfera. Mas também havia o fantasma de uma frase que estava me devorando” (SMITH, 2015, pág. 82/83)

Esse sentimento de Patti é compartilhado por todos os leitores. É claro que divergimos entre as escolhas das obras-primas, porém, o impacto de alguns livros na nossa vida é tão grande, que ficamos procurando outros como aqueles favoritos em todos os livros que lemos. Atualmente, estou um pouco frustrada por ainda não ter favoritado nenhum livro em 2023. No ano passado, em meados de fevereiro, eu já tinha três favoritos, enquanto neste ano, nada. Creio que essa falta de coraçõezinhos nas minhas leituras se deve às últimas feitas em dezembro passado, que me marcaram profundamente. Quando isso acontece, é comum que os outros livros simbolizem apenas mais do mesmo.

Na vibe do discurso de Patti Smith e concatenando com a definição de sentimentecas do Patrick Chamoiseau, alguns livros contém tudo o que esperamos deles, deixando os outros em uma vala comum. Essas escolhas são totalmente pessoais, afinal, li O mestre e margarida e não tive a mesma epifania que Patti Smith. Porém, ano passado, uma das minhas últimas leituras foi Autobiografia: o mundo de ontem, do Stefan Zweig e apesar de ser um livro de não-ficção, ele uniu muitos aspectos literários que eu valorizo em uma obra, tais como boa escrita, contexto histórico aliado às memórias individuais, drama e bom enredo. Assim, fico sempre buscando outro livro como esse, ou seja, ele passou a ser um parâmetro para os outros. O mesmo aconteceu quando li O som e a fúria de William Faulkner: esperava de todos os textos a mesma qualidade estética e o mesmo arrebatamento que essa obra me proporcionou. O que é difícil de encontrar por vários motivos.

No último domingo, a Jéssica Mattos fez uma live no seu canal do YouTube (https://www.youtube.com/watch?v=JhlztvZPaJk) falando um pouco sobre esse tema: o que nos motiva a ler os livros? Porque os lemos? E, de acordo com a teoria literária, a ficção tem uma função de fruição e não precisa necessariamente ter um compromisso com a realidade. Assim um escritor de ficção pode nos surpreender, pode causar esse arrebatamento que Patti Smith chama de esfregar, torcer e colocar o leitor para secar e que Kafka chama de livros que ferem e golpeiam e que os demais, aqueles que não estão nos despertando com uma pancada na cabeça nem merecem ser lidos – isso é o que um leitor que leu uma obra-prima espera de todos os livros que ler daí por diante. Os nossos parâmetros só aumentam à medida em que nos tornamos mais experientes na literatura. E não precisamos estudar teoria literária para perceber esses aspectos da ficção e até mesmo da não-ficção: um texto mal escrito certamente não será lido até o fim.

Portanto, quando lemos um livro muito bom ou um livro que nos impactou por diversos motivos diferentes, sejam eles sentimentais ou estéticos, ficamos órfãos daquela história, como a Patti Smith explica em sua experiência com O pássaro de corda. E certamente todos nós já passamos por isso. A Jéssica até sugeriu que passássemos o ano lendo os nossos autores favoritos, porém, nem todos os livros do Zweig me impactaram como sua autobiografia, assim como já li mais de cinco livros do Dickens e nem todos são cinco estrelas. A nossa relação com a literatura e com a arte é na verdade, bastante subjetiva. O favoritismo de uma obra depende muito do nosso estado de espírito, das circunstâncias daquele momento e da nossa bagagem, do nosso conhecimento prévio de mundo. E pensando em tudo isso, consegui formar uma sentimenteca com 24 obras, que de uma forma ou de outra, me transformaram e servem sempre de parâmetro naqueles momentos em que não consigo ler nada e procuro algo com as características que me levaram a amar um livro. Vou falar um pouco sobre a minha sentimenteca e os motivos pelos quais favoritei cada um desses livros.

O primeiro insight que a literatura me proporcionou, sim vou ser repetitiva, foi com a leitura de A cidade do sol, pelo fato de ser um livro escrito por uma pessoa afegã, que perdeu tudo, mas que tinha lembranças vívidas de seu país natal como era antes do talibã. Assim, descobri o meu amor por romances históricos e por livros que mostram a realidade de lugares que nunca vou conhecer pessoalmente. Esse foi por exemplo, o principal motivo para eu assinar a TAG Inéditos por tantos anos. Nesta mesma prateleira da sentimenteca, coloco também Adeus China de Li Cuxin, autobiografia onde ele conta além da sua história o contexto socialista chinês do século XX. De amor e trevas e Autobiografia: o mundo de ontem também estão nessa categoria de favoritismo. São livros que agregam valor, geram empatia e nos mostram o mundo sob uma outra perspectiva.

Outro gênero literário que sempre me chamou a atenção é o romance policial. Porém, aqui temos geralmente uma fórmula que dá certo e esses livros vão perdendo a graça, tornando-se sempre mais do mesmo. Por isso gostei tanto de Sobre meninos e lobos: apesar de ser do gênero policial, ele foge do óbvio. Os personagens são bem desenvolvidos, a história é marcante, há uma amizade desfeita, uma dor que nunca se acaba e uma investigação que dá algumas reviravoltas, terminando de um jeito muito triste, mas real, possível. A escrita de Dennis Lahane é excelente e esse fator estético pesou bastante no meu amor por esse livro. Ao lado dele, coloco também A sombra do vento, um dos melhores livros que já li na vida. A escrita do Zafón é magnífica. Suas histórias mesclam romance histórico, romance policial, romance nonsense, drama familiar e história de amor. É bom lembrar que é para encontrar livros como esse que lemos tanto.

Talvez um dos fatores primordiais para que eu favorite um livro sejam, além da estética, a novidade, os clichês apresentados de forma diferente, temas universais de uma forma inédita. Um dos assuntos mais explorados pela literatura é a Segunda Guerra Mundial, algo que me interessa demasiadamente. O rouxinol, romance ambientado na França, durante a ocupação nazista foi um livro arrebatador para mim. Ele conta sobre o movimento de resistência francesa, algo que eu não tinha visto ainda nos livros. Mesmo hoje, que já li tantos textos sobre o assunto, O rouxinol ainda me impacta muito e sua história continua comigo. Nesta mesma categoria da sentimenteca, entra também o meu amado Novembro de 63, do Stephen King. O tema é viagem no tempo e a possibilidade de mudar o passado. Porém a forma como a história é contada e a pesquisa histórica feita pelo autor é sensacional e fez do livro gigante. A gangue dos sonhos também ficaria nesta prateleira da sentimenteca. Com uma mistura de romance histórico, abordando a imigração italiana para a América no início do século XX, mais personagens complexos, carismáticos e outros nem tanto, o autor nos conduz em uma história onde a esperança vence, mesmo quando só há desesperança.

Outro livro arrebatador que também traz momentos de esperança dentro das impossibilidades da vida é Uma vida pequena da escritora estadunidense Hanya Yanaghiara. A amizade é o tema central, porém, ela aborda também o abandono de bebês, a miscigenação racial, os transtornos de personalidade, depressão, violência de todas as formas, homoafetividade e o conceito de justiça. Só de pensar nesse livro tenho vontade de reler. Ele é imenso, não apenas em tamanho, mas também em conteúdo. Middlemarch é outro livro que se encaixa nessa prateleira da sentimenteca. O tema principal dessa história é o casamento a partir das expectativas e o confronto com a realidade. O destaque dessa obra fica por conta dos personagens, que são humanos e muito próximos de nós.

Você leitor fiel, que está sempre por aqui, está sentindo falta de alguém? Se chutou Alice Munro, acertou. Chegou a sua vez. Eu não consigo explicar de forma racional por que eu amo tanto os contos dessa autora. Seus livros a princípio me trouxeram um sentimento de identificação e de pertencimento. As mulheres de Munro dialogam com a minha mãe, com as minhas avós, minhas tias, comigo mesma, com minhas amigas, vizinhas… Alice Munro tem o dom de contar as vicissitudes da vida através de cenas cotidianas, mostrando que nós nuca sabemos qual atitude nossa vai transformar a vida para sempre. Muitas vezes um caminho errado, estar no lugar errado na hora errada, uma ligação, um bilhete, uma palavra podem mudar tudo. Ela consegue ser sublime e ao mesmo tempo perturbadora. E eu poderia ler Alice Munro para o resto da minha vida de boas, sem problemas, sem me cansar e sem que sua obra se esgote. Certamente eu reservaria uma prateleira da sentimenteca só para ela. Poderia colocar os contos completos e alguns romances da Clarice Lispector junto com a Munro.

Seguindo essa linha do meu amor por Munro e Clarice, a humanidade dos personagens é algo que me cativa muito na literatura. Dessa forma, mesmo sendo um romance esteticamente ruim, Pátria do Fernando Aramburu tem um lugar cativo na minha sentimenteca. Esse foi um dos livros que mais me despertou reflexões justamente por não ter da parte do narrador um julgamento de valor sobre as atitudes dos personagens. Eles fazem o que dá para fazer dentro da situação em que se encontram. A trama é simples: duas amigas de juventude brigam por causa do grupo separatista ETA, que pleiteava de forma agressiva a independência do País Basco sob o domínio da Espanha. O filho de uma das amigas faz parte do ETA enquanto o marido da outra foi assassinado pelo grupo. A mesma coisa aconteceu quando eu li Os contos completos do Tolstói. Nessas histórias curtas, o autor russo nos leva a reflexões muito profundas sobre a vida, as nossas escolhas e a nossa relação com o dinheiro e com o poder. Os Buddenbrook do escritor alemão Thomas Mann também ficariam na mesma prateleira da sentimenteca. Os personagens que Mann nos apresenta aqui formam um panorama da Alemanha no final do século XIX, além de nos mostrar também as transformações advindas das ferrovias, o desenvolvimento das cidades, o crescimento econômico e a chegada do capitalismo. Os personagens são humanos e também fazem o que podem dentro de suas bolhas.

Por outro lado, existem livros difíceis de explicar porque se tornam favoritos. Talvez eles sejam tão gigantes, que se bastam. Dentro deles há uma vida, não apenas uma história. É o caso por exemplo de A dança da morte do Stephen King. Neste romance de fôlego temos um mundo pós-apocalíptico onde as pessoas escolhem um lado, o bem ou o mal. Porém, o livro não é maniqueísta como parece. As pessoas vão mostrando as suas frustrações do mundo anterior e como elas definem suas ações e sua vida atual. King tem a capacidade de criar personagens tão complexos, tão ambivalentes, que eles permanecem com o leitor mesmo depois de anos da leitura. Além disso, o escritor coloca tantas referências de mundo, bíblicas e culturais nesse texto, que o enriquece junto ao leitor, que aprende muito ao ler a obra e buscar essas referências. Creio que nada se compara a esse tipo de livro no momento e estou precisando de um companheiro para ele aqui na sentimenteca.

Assim como A dança da morte, que contém uma vida dentro do livro, existem outros enredos enormes também, mas que são trabalhados de uma forma diferente, através do fluxo de consciência e da polifonia. Fazer isso é complicado e por isso, quando encontramos pérolas como O apanhador no campo de centeio e O som e a fúria, parece que o mundo para só para eles passarem. São aquelas leituras que nos esvaziam e depois delas, entramos na famosa ressaca literária. O padrão de qualidade sobe consideravelmente e o leitor é transformado. Além do formato estético que contribui de forma decisiva nesse caso, as reflexões que esses livros proporcionam fecham o pacote completo de preferência e favoritismo. Por outro lado, existem obras também que trazem à tona um tema central que está bastante em voga atualmente que é o cancelamento. Entretanto, vários desses livros foram escritos muito antes da internet, mostrando que o cancelamento sempre existiu e sempre vai existir.

Ler por exemplo A marca humana do Phillip Roth é um convite à reflexão e ao mesmo tempo à revolta, “nos ajudando a combater em nós os efeitos da dominação” nas palavras de Patrick Chamoiseau. O autor aborda diversos temas que são importantes no contexto dos Estados Unidos, mas que são na verdade universais. Às vezes, as pessoas não pensam nas consequências de suas fofocas e de suas palavras, que podem ser fatais e destruir muitas vidas. É o que acontece também em A casa da alegria, de Edith Wharton que além do cancelamento velado, dos julgamentos severos de valor e de conduta, reúne também referências críticas à sociedade e ao comportamento hipócrita das pessoas, que infelizmente perpetuamos todos os dias, insistindo em agir de forma falsa e mentirosa, julgando e condenando os outros com severidade e esperando que o mesmo não nos atinja. Outro livro que me provocou sentimento de revolta e uma das maiores ressacas literárias dos últimos anos.

Ler Dom Casmurro e saber que Machado de Assis foi um escritor brasileiro, não tem preço! A cada estudo publicado sobre o livro ou sobre o autor, mais admirada eu fico com a sua erudição, seus conhecimentos de mundo e sua habilidade narrativa em contar boas histórias, que parecem simples e tolas à primeira vista, porém, contém uma grandeza e uma profundidade tão grandes que são inesgotáveis. Ter o privilégio de ser brasileira e poder ler Grande Sertão: veredas em seu original, é incrível e essas obras monumentais deixam a nossa sentimenteca ainda mais recheada de boas histórias e de vida, de esperança que novos favoritos vão se somar a essas prateleiras. Da mesma forma, temos uma jornalista maravilhosa, Eliane Brum, que também é brasileira e nos presenteou com o querido Banzeiro Òkòtó. Ele me levou a um sentimento de empatia muito grande e me fez compreender a vida, os pensamentos e os sentimentos de pessoas que estão muito distantes de mim, mas que fazem parte da construção do Brasil, na verdade, são os donos da terra que foi usurpada pelos colonizadores. Banzeiro me ajudou a entender melhor a história do Brasil, sob um outro olhar e entender principalmente que nem tudo o que é bom para mim é também para o outro. Também compreendi que 99% de nós age dessa forma, silenciando o outro, dominando o mais fraco para se sobressair ou com a intenção de impor a sua vontade sobre o outro. É difícil mudar de atitude. Porém, a partir do momento em que nos conscientizamos disso tudo, fica mais fácil cuidar para não reincidir nos erros.

Assim, nossas sentimentecas são feitas de momentos isolados, junto a boas narrativas, histórias que nos marcaram, livros que conversaram conosco por causa do seu caráter universal, outros que de tão bem escritos nos cativam, mesmo que o enredo não tenha absolutamente nada a ver com o nosso cotidiano. Nelas também cabem os livros que nos mostraram a vida como ela é, que nos ampararam quando tudo parecia desmoronar, que estiveram presentes em dias especiais, em momentos decisivos, que nos golpearam e depois estenderam para secar, é feita também daqueles que ganhamos de presente, que foram escolhidos para nós, ou melhor, que nos escolheram. Os livros guaram histórias e não apenas aquelas contidas em seus enredos, mas principalmente, a história de seus donos. Quando alguém acessa a nossa biblioteca, folheia nossos livros, lê os nossos comentários e observa os nossos grifos, essa pessoa sabe muito sobre nós e cria conosco uma conexão de intimidade que chega a ser perturbadora. Mas isso é assunto para um outro post…

Criar a minha sentimenteca foi uma experiência enriquecedora e também uma trajetória de autoconhecimento. É uma jornada, afinal, nem todos os nossos livros favoritos vão estar aqui. São apenas alguns que sobrevivem ao tempo e às releituras. Esse movimento me fez pensar em separar alguns livros parados na estante que reúnam algumas dessas características tão recorrentes que me levam a dar cinco estrelas e coraçãozinho para uma obra e tentar encaixá-las nas minhas próximas leituras. Quem sabe dessa lista, surge o primeiro favorito de 2023? Vou compartilhar minhas escolhas no Instagram em breve. Me contem nos comentários quais os livros compõem a sua sentimenteca e porquê fazem parte dela. Essa troca é sempre importante e nos ajuda a conhecer livros novos para as nossas bibliotecas sentimentais.

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