crítica

Seus olhos viam Deus – Zora Neale Hurston

Considerado um clássico da literatura norte-americana, Seus olhos viam Deus (Record, 2022) é um livro que ficou esquecido por muitos anos e que foi redescoberto por Alice Walker, quando esta estudava alguns textos para a sua tese de mestrado e encontrou escritos de Zora Neale Hurston, que dialogaram diretamente com ela e sua dissertação. A partir daí, Walker não mediu esforços em dar voz a essa escritora, resgatar suas obras, pressionar as editoras a reimprimir seus livros e indicando principalmente Seus olhos…. aos seus alunos da graduação. Graças a esse esforço da professora e escritora, Zora voltou a ser impressa, lida e estudada por muitos leitores mundo a fora, recebendo a devida atenção postumamente.

No enredo daquela que é considerada sua obra-prima, temos a história de Janie, uma mulher negra à frente do seu tempo e que teve como inspiração para a busca constante e incansável de seus objetivos a avó, Babá. A história começa a ser contada no primeiro capítulo, em um momento em que a protagonista está de volta à cidade onde passou a maior parte de sua vida, contando sua trajetória à sua amiga Phoebe. Ela lhe diz que se achar interessante, pode contar essa conversa para outras pessoas que quiserem saber. E logo nós, leitores, percebemos que essa é uma anedota que precisa ser contada e que vai nos trazer grandes reflexões e mais conhecimento sobre as vicissitudes enfrentadas pela população negra estadunidense, após a Guerra Civil e no início do século XX, onde a segregação ainda era muito forte.

Utilizando na maior parte de sua narrativa o discurso direto e a oralidade, mostrando uma realidade muito intrínseca das pessoas que ela vai retratar no romance, Zora Neale Hurston nos insere na vida de Janie, personagem pela qual nos apaixonamos desde o primeiro capítulo. Retrocedendo às suas origens, ela conta a amiga Phoebe sobre a sua avó Babá, uma mulher que foi escravizada, passando por diversas violências de todos os tipos, até que foi vendida para uma família sulista e passou a trabalhar na propriedade como empregada não remunerada. Após engravidar involuntariamente de seu patrão, depois de ser forçada a dormir com ele, a esposa foi conhecer a bebê, mãe de Janie:

“- Sua preta, quê que faz seu bebê com esses olho cinza e os cabelo amarelo? – Ela se danou a me dar tapa nos queixo pra todo lado. Eu nem senti os primeiro, porque tava cuidando de cobrir meu bebê. Mas os último me queimou que nem fogo. Eu tinha sentimento demais pra saber qual que eu ia seguir, por isso não disse nada nem fiz nada. Mas aí ela continuou perguntando como era que meu bebê parecia uma branca. Me perguntou isso umas vinte e cinco ou trinta vez, como se tivesse de dizer isso e num pudesse parar. Aí eu disse pra ela:

– Eu num sei nada, só o que mandaram eu fazer, porque eu num sou nada, só uma preta e escrava.

(…)

– Eu nunca que ia sujar minhas mão no cê. Mas amanhã logo de manhãzinha o feitor vai te levar pro pelourinho, amarrar de joelho e arrancar o couro de suas costa mulata. Cem chibatada de couro cru nas costa nua. Vou mandar te chicotear até o sangue chegar aos calcanhar! Eu mesma quero contar as lambada. E se isso matar ocê eu arco com o prejuízo. De qualquer modo, assim que essa moleca fizer um mês vou vender ela pra longe daqui” (HURSTON, 2022, pág. 38)

Babá conseguiu fugir com a filha e pode ter um destino diferente, porém, a história de muitas mulheres, principalmente das mulheres negras foi a morte ou o castigo pelo simples fato de existir. Desde os primórdios, alguns homens, em especial o homem branco, hetero e privilegiado, tem como hábito abusar das mulheres e sair incólume de seu crime. Esse comportamento doentio foi se perpetuando ao longo do tempo e, devido ao fato de vivermos em uma sociedade patriarcal, a “culpa” sempre foi da mulher – seja por ela estar usando uma roupa curta, por ela ser provocante, bonita ou simplesmente por ser mulher. Sabemos de muitos casos de violência, principalmente de abuso sexual de patrões com empregadas, considerados pela sociedade como algo comum, normal e que deveria ser silenciado.

Ainda bem que atualmente, esse comportamento não é mais tolerado, as pessoas estão reagindo, denunciando e insistindo para que as punições sejam severas em relação a esse tipo de crime porque nossas ancestrais passaram por situações acachapantes que terminavam mesmo em morte. Mas para contar a história de Janie, Babá sobreviveu, fugiu, conseguiu viver em uma comunidade livre, cuidou da sua bebê e ensinou a ela a importância da liberdade, do pensamento livre e tentou de todas as formas impedir que a filha se relacionasse com homens que a tentassem dominar. Entretanto, para a mãe de Janie o destino não foi benevolente. Apesar dos avisos, ela se envolveu com as pessoas erradas e Janie nasceu filha de pai desconhecido.

Após a fuga da filha, Babá cuidou da neta com muito amor e dedicação. Foi firme quando tinha de ser, mas amorosa e gentil em todas as situações. Ensinou à neta que ela deveria lutar por seus sonhos e não desistir de ser livre e feliz. Quando a garota chegou a uma idade considerada pela avó perigosa para as mulheres – 14 anos – ela lhe recomendou um marido, um senhor viúvo, que tinha algumas terras e que poderia ser um esteio para Janie. O pavor de Babá em ver sua história e a de sua filha se repetindo com Janie era tanto, que ela não hesitou em organizar esse casamento, acreditando que tudo ficaria bem e que a neta teria uma vida boa e decente, como deveria ser. O problema é que Janie esperava o amor. Ela queria ser feliz, se apaixonar e ter um propósito na vida. Arar a terra, fazer o serviço doméstico, ter filhos não lhe bastava. Ela queria mais. O marido não fugia à regra daquele tempo: machista, dominador, via a esposa como um acessório e esperava dela as funções relegadas às mulheres daquela época.

Cansada de esperar o amor, Janie começou a dar sinais de que não estava feliz e assim, descumpria as ordens do marido. Foi assim que começou a apanhar. Até que um dia, fugiu com um homem que passou pela estrada afirmando que estavam construindo uma cidade só de pessoas negras e que ele gostaria de ser um de seus fundadores. Sem ao menos se dar ao trabalho de se separar do marido, Janie seguiu esse homem rumo ao progresso, porém, o casamento novo que foi feliz nos primeiros meses, tornou-se ao longo do tempo uma repetição do primeiro casamento: violência, machismo, ciúmes e o silenciamento da mulher. Janie é descrita como uma pessoa atraente, jovial e amigável. Seu ponto forte e que chama muito a atenção das pessoas é o cabelo, longo e belo, muitas vezes irresistível ao toque. Joe, o segundo marido de Janie, a obrigava a manter o cabelo sempre preso com um lenço, cobrindo-o para não chamar a atenção das pessoas, ou melhor, de outros homens.

Janie ficou viúva e muito rica. Joe não perdeu tempo em ganhar dinheiro sendo prefeito da cidade nova e empreendendo de todas as formas que pode. O fato de ter mais instrução que os outros e um nível maior de escolaridade, o ajudou muito em suas empreitadas financeiras, fazendo com que acumulassem bastante dinheiro e bens. Logo apareceu por lá aquele que seria o grande amor de Janie, Tea Cake. Com ele, homem mais jovem, muito diferente dos maridos anteriores, com ar bonachão e inicialmente para o leitor, assim como para a comunidade, parecia mais um aproveitador, Janie encontrou a realização do amor. Ele se mostra ao longo da prosa um personagem complexo, que ao mesmo tempo em que amava a mulher, a mantinha sob rédea curta, impedindo-a de ter uma vida própria, fazer suas escolhas e ser livre. A violência doméstica, assim como as traições também faziam parte do relacionamento dos dois. Tea Cake, um pouco diferente dos outros maridos, com suas assincrasias, foi capaz de corresponder ao amor de Janie até certo ponto. Os dois se mudaram para outra cidade e fizeram ali sua vida, pautada na simplicidade. A herança de Janie foi guardada no banco e ela não teve muita escolha senão colher feijão com o marido e viver daquilo que produziam e ganhavam com o suor de seus rostos.

A vida em Everglades foi boa para Janie e Tea Cake. Um dos maiores agravos em sua relação aconteceu quando a Sra. Turner, proprietária de um restaurante local, mulher negra de pele clara, se aproximou de Janie e começou a lhe fazer algumas visitas inconvenientes. A Sra. Turner tinha preconceito contra a própria raça e defendia o “branqueamento” da população. Algumas de suas falas são muito cruéis e polêmicas, o que despertou o ódio de Tea Cake, homem negro de pele retinta:

A sinhora é diferente de mim. Eu num suporto esses preto. Num culpo os branco por odiar eles. Outra coisa, eu odeio vê gente que nem a sinhora e eu misturada com eles. Nós devia escolher um pouco. (…) Eles me enche. Vive tudo rindo! Eles ri demais e alto demais. Sempre cantando umas música velha de preto! Sempre fazendo palhaçada pros branco. Se num fosse por tanto preto, num tinha problema de raça. Os branco aceitava a gente com eles. Os preto é que puxa a gente pra trás. (…) Num é pobreza, é a cor e as feição. Quem é que quer um bebê preto deitado no carrinho que nem uma borboleta num copo-de-leite? Quem é que quer se misturar com preto enferrujado, e uma nega andando pela rua com umas cor berrante, saltando e berrando e rindo de nada? Eu num sei. Num me traga nenhum douto preto quando eu tiver doente. Eu tive seis filho… só tive a sorte de criar um… e nunca deixei um preto me tomar o pulso. Meu dinheiro vai sempre pros dotô branco. Eu também num entro em ninhuma loja de preto pra comprar nada. Gente de cor num sabe nada de comércio. Deus me livre!” (HURSTON, 2022, pág. 181/ 182)

A questão do colorismo é bastante presente em Seus olhos viam Deus, que é uma consequência direta de todas as violências mencionadas anteriormente, a começar pela invasão do continente africano pelos europeus, seguido do sequestro das pessoas de suas terras e a posterior escravidão, que nos traz problemas severos, relacionados ao racismo estrutural até os dias atuais. É claro que a comunidade de Everglades expulsou a família Turner de lá, em uma cena de bastante ação, mostrando a revolta de todos os envolvidos e nossa também como leitores. É importante salientar que mesmo sendo horríveis as falas da Sra. Turner, ela também é uma vítima da escravidão e das violências de gênero e raça impostas por uma população privilegiada que se acostumou a lucrar em cima do sofrimento e da morte dos outros.

O título do romance tem uma simbologia muito bonita, que remete à esperança consciente das pessoas: “Duas coisa todo mundo tem que fazer por si mesmo. Tem de procurar Deus e descobrir como é a vida vivendo eles mesmo” (HURSTON, 2022, pág. 241). Esse trecho, que é citado tanto no começo da narrativa, quanto no final dela, faz todo o sentido quando os desdobramentos da trama chegam a um desfecho triste, que leva Janie ao tribunal, onde ela é julgada e inocentada de um crime. Mais para o final do romance, há a passagem de um furacão por Everglade, fenômeno que vai transformar a vida de todos os personagens e onde essa questão de ver Deus e confiar nele estará muito presente para a protagonista.

Em Seus olhos viam Deus, aprendemos muito sobre as tradições e costumes da população negra do sul dos Estados Unidos. Na época de seu lançamento, muitos críticos e intelectuais negros se indignaram com a forma como Zora contou essa história. Eles alegavam que ela estava divertindo as pessoas brancas colocando os negros em situações de ridículo e de troça. Entretanto, muitas pessoas da comunidade negra se identificaram com o estilo de vida apresentado em Seus olhos viam Deus. Os conflitos éticos e morais, principalmente aqueles ligados à religião, fazem parte dessa trama e são apresentados de forma verossímil e de fácil compreensão para o leitor que não está inserido nessa comunidade.

Aí quando a gente viu o retrato e apontou todo mundo, só ficou faltando uma menininha pretinha, pretinha, com os cabelo em pé, ao lado de Eleanor. Devia de ser eu, mas eu não me conheci naquela menina preta. Aí perguntei: ‘Onde é que tô? Eu num tô me vendo aí’! Todo mundo riu, até seu Washburn. Dona Nellie, mãe dos menino, que voltou pra casa depois que o marido morreu, apontou a pretinha e disse: ‘Essa aí é você, Alfabeto, será que não conhece você mesma’? Todo mundo de chamava de Alfabeto, porque muita gente tinha me dado um bocado de nome diferente. Fiquei olhando um tempão pro retrato e vi que era meu vestido e meus cabelo, e aí disse: ‘Oh, oh! Eu sou preta’! Aí foi que eles riu mesmo. Mas antes de ver o retrato eu achava que era igual aos outro”. (HURSTON, 2022, pág. 28)

O trecho acima se refere a uma conversa de Janie com a amiga Phoebe, onde ela conta a sua história de vida e o momento em que se deu conta de sua cor e como essa consciência mudou tudo para ela. Um pouco depois, vem uma das partes do livro que mais gosto e que creio eu seja o fio condutor da vida de Janie, quando Babá deixa a ela o seu legado, mostrando que mesmo sofrendo tantas violências ao longo da vida, é importante manter a fé, a esperança e lutar pelos nossos sonhos e ideais. Janie fez exatamente isso em sua vida, mesmo quando todos se voltavam contra ela e duvidavam de sua capacidade de fazer boas escolhas:

Sua vó num vai fazer mal a um fio de cabelo da sua cabeça. E também não quer que ninguém mais faz, se puder impedir. Querida, o branco manda em tudo desde que eu me entendo por gente. Por isso o branco larga a carga e manda o preto pegar. Ele pega porque tem de pegar, mas num carrega. Dá pras mulher dele. As preta é as mula do mundo até onde eu vejo. Eu venho rezando pra num ser assim com ocê. Senhor! Senhor! Senhor!

(…)

Cê sabe, querida, nós preto é galho sem raiz, e isso faz tudo acontecer de um jeito esquisito. Ocê mesma. Eu nasci no tempo da escravidão, e por isso não podia tornar verdade meus sonho do que devia ser e fazer uma mulher. Isso é um dos mal da escravidão. Mas nada impede que ocê queira. Ninguém pode rebaixar tanto uma pessoa com pancada que roube ela da vontade dela. Eu num queria ser usada que nem boi de carga ou porca parideira, e também num queria que minha filha fosse. Num foi por minha vontade que tudo saiu que nem saiu. Eu odiei até o jeito de ocê nascer. Mas mesmo assim dei graças a Deus, tinha outra chance. Eu queria fazer um grande sermão sobre as preta que tá lá no alto, mas num tinha púlpito. A liberdade me encontrou com um bebê nos braço, por isso eu disse que ia pegar uma vassoura e uma panela e abrir uma estrada real pra ela no meio do deserto. Ela ia dizer o que eu pensava. Mas de um jeito ou de outro ela se perdeu da estrada real, e quando eu menos esperava tava ocê no mundo. Por isso, enquanto eu cuidava de ocê de noite, eu disse que ia guardar as palavra procê. Esperei muito tempo, Janie, mas nada que eu passei foi demais, se ocê tomar um lugar lá no alto que nem eu sonhei” (HURSTON, 2022, pág.34/ 36/ 37).

É impressionante como um romance tão potente, tão expressivo tenha ficado escondido por tanto tempo e ser tão pouco falado entre os produtores de conteúdo literário. Vamos espalhar a palavra de Zora Neale Hurston e aprender um pouco com essa mulher que tem tanto a nos dizer e ensinar.

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