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Stephen King: um passeio pela mente humana através da ficção especulativa

Conhecido como o mestre do horror, Stephen King publicou desde a década de 1970, mais de 60 romances e em torno de 200 contos distribuídos em coletâneas, construindo assim um portfólio invejável, rico em conteúdo e principalmente em discussões pertinentes sobre o ser humano e suas mazelas; sua capacidade em fazer o mal, quando exposto a situações acachapantes, não tendo condições de enfrenta-las, mudando aquilo que pode ser modificado e aceitando o que não pode ser. King tem uma certa propriedade para falar sobre assuntos difíceis, pois sua própria trajetória não foi nada fácil. O pai saiu de casa quando o escritor tinha quatro anos de idade; dessa forma, ele, a mãe e o irmão viveram em muitas cidades dos Estados Unidos até se mudarem definitivamente para Durham no Maine, terra natal de sua mãe. Ao longo desse movimento nômade, eles passaram muitas dificuldades financeiras e sofreram as consequências do abandono, algo que aparece muito em sua obra.

Desde a infância, King demonstrava interesse pela escrita. Fez parte do jornal da faculdade, escrevia contos de terror e vendia aos amigos na escola, tentou contribuir com algumas histórias curtas para jornais, mas, terminou como professor de inglês no Maine. Casou-se com Tabitha King em 1971 e o começo da vida a dois foi bem complicado: moravam em um thrailler e levavam uma vida simples. King presenciou a morte de um grande amigo, que foi atropelado por um comboio de trem, passou por mais de uma década de vícios em álcool e em drogas; sofreu um grave acidente durante uma de suas caminhadas próximo à sua casa e precisou passar por três cirurgias para sobreviver. Histórias como a dele, fazem as pessoas refletirem sobre muitas coisas, pois, a vida está sempre por um fio e essa sensação de brevidade, de que a qualquer momento tudo pode mudar ou mesmo acabar, faz com que o indivíduo analítico procure levar a vida mais a sério e praticar boas ações.

King sempre gostou de histórias de terror, suspense e morte. Em seu livro Sobre a escrita, ele fala bastante sobre as obras de arte, tanto cinematográficas como literárias que mais o influenciaram e impactaram. O autor utiliza uma mescla desse fascínio pela Dark Academia, com referências de suas vivências e suas observações sobre o mundo ao seu redor para criar personagens inesquecíveis. Assim surgem os temas de seus romances e contos, onde o escritor utiliza da especulação, do terror e da metafísica para mostrar o bem e o mal que vivem dentro de um ser humano. Seus temas são ao mesmo tempo contemporâneos, mas também universais e atemporais.

A obra de Stephen King ficou estigmatizada por dois fatores cruciais: o primeiro, o contexto social da década de 1980 e o segundo, a popularização de sua obra, que foi vastamente adaptada para os cinemas, fazendo um grande sucesso com filmes como À espera de um milagre, Um sonho de liberdade, Conta comigo, dentre muitos outros. Existe um grande conflito entre a erudição, conhecida como “alta literatura” e o popular, conhecidos como “best-sellers”. Muitas vezes, escritores grandiosos são colocados dentro desses estigmas e rechaçados pela Academia por fazerem muito sucesso com o público, deixando assim de fazer parte da elite da literatura. Tudo isso é na verdade uma grande bobagem porque o conceito de cânone e de alta literatura tem como princípio básico a exclusão de alguns em prol da elevação de outros. Não deixa de ser uma forma de dominação e de manter uma classe favorecida acima das massas. Lembrando que muitos romancistas célebres, que hoje são estudados nas academias de letras, antigamente, no seu tempo, foram considerados romances de massa, populares e de baixa qualidade estética. Estão neste hall escritores hoje consagrados como Charles Dickens, Dostoievski, Tolstói, as irmãs Brontë, dentre tantos outros.

Já o primeiro estigma sobre o nome de Stephen King, vem do contexto histórico da década de 1980. Havia nos Estados Unidos um governo de extrema direita, que prezava por valores conservadoristas. Dessa forma, os conflitos entre o popular e o erudito estavam em alta e tudo aquilo que não se encaixava nos padrões sociais impostos pela minoria dominante, eram considerados subversivos e perigosos para a sociedade. O capitalismo tardio estava em alta neste período, assim as pessoas consumiam bastante as novas tecnologias, tendo maior acesso às imagens, aos espetáculos, ao teatro, ao cinema, à história, ao conhecimento e ao universo fora dos Estados Unidos. Na literatura pós-moderna, o leitor conhecia a metaficção, os narradores não confiáveis e partiam para a autorreflexão a partir dos textos a que tinham acesso. Foi a época também do auge das bandas de rock, que pregavam as ideias dionisíacas, o prazer, a diversão e muitas vezes, a promiscuidade. Era um momento de disruptura, de mudanças paradigmáticas e isso incomodava o governo que pregava os valores religiosos engessados, dentro de um padrão de comportamento rígido e imutável. Dessa forma, tanto as bandas de rock quanto a literatura de terror que vivia o seu boom, foram relacionadas ao satanismo.

A literatura de horror começou a se destacar na década de 1980 por causa dos estudos da psicanálise sobre os serial killers, o que os motivava a se tornarem assassinos em série. O livro Mindhunter, do escritor John E. Douglas mostra os primeiros estudos sobre o tema, que provocou a curiosidade de muitos autores que exploraram os meandros da mente humana através da psicanálise, em obras que foram classificadas pelas editoras como terror/ horror. São os casos de O bebê de Rosemary, O exorcista, Psicopata americano, dentre muitos outros. No caso de Stephen King, temos Carrie, seu primeiro romance, O cemitério, Salem e o clássico O iluminado. Cansados de lutar contra o estigma de satanistas e de párias da literatura, os autores sugeriram aos editores que modificassem a classificação do gênero literário de suas obras para thriller psicológico. O experimento foi feito a partir da publicação de O silêncio dos inocentes, de Thomas Herris, em 1988. A partir dessa mudança, os escritores que utilizam de elementos sobrenaturais para tratar sobre as mazelas humanas, deixaram de ser atacados como anticristos.

Os temas propostos pelos autores da época giravam em torno de transtornos psicológicos dos personagens – de origem biológica, ou de dificuldades provocadas geralmente por situações vivenciadas na infância/ adolescência ou por outros fatores do meio social que causavam reações muito incompreensíveis para aqueles que não tiveram essas experiências. O objetivo deles era provocar no leitor um pouco de empatia ou mesmo apenas de simpatia por aqueles personagens que agiam sem pensar ou que sofriam tanto a ponto de enlouquecerem. O uso do transcendental e dos poderes paranormais era uma forma de empoderar personagens dúbios, ou vítimas de bullying ou de doenças mentais e físicas que os excluíam da sociedade em questão: neoliberal, conservadora, preconceituosa, desigual e às vezes alienada da realidade.  Em seu primeiro romance, King, dá vida à personagem Carrie, trazendo um tema muito atual e que sempre fez parte da vida das pessoas, que é o bullying. Após ser fartamente dominada pela mãe, fanática religiosa e assediada de várias formas por seus colegas e vizinhos, através de seus poderes paranormais, dá uma lição na pequena cidade onde vive.

Em O iluminado, o autor cria Dany, um garotinho que tem o dom da iluminação e se comunica com espíritos de outros mundos. Mas, o tema central desse romance é o alcoolismo. Jack, pai de Dany é alcóolatra e por isso se torna um homem violento, capaz de agredir as pessoas que mais ama na vida. Ele também abre espaço em sua mente para ser dominado por “espíritos” malignos, que nada mais são que os nossos próprios pensamentos nefastos, que nos levam à loucura. Na coletânea de contos Escuridão total sem estrelas, o autor aborda temas corriqueiros como o abuso sexual, a violência contra a mulher, traição e luto de uma forma profunda e reflexiva, utilizando-se de cenas gráficas e escatológicas de muita violência, para mostrar que o mundo está cheio dessas coisas e que não adianta fechar os olhos e se alienar delas, pois continuarão existindo.

Em um dos meus livros favoritos do autor, A dança da morte, King cria um universo distópico, onde a terra foi devastada por uma pandemia e as pessoas estão fugindo sob o comando de duas forças: o bem e o mal. Não se engane achando que é um romance maniqueísta. Ele está longe disso: seus personagens são extremamente complexos, cheios de nuances e todas as suas atitudes são fundamentadas em acontecimentos prévios, que levaram esses protagonistas ao lugar onde estão. Em À espera de um milagre, conhecemos um homem que foi condenado à pena de morte injustamente, onde o autor discute o sistema penitenciário norte-americano, as condenações a penas degradantes e o racismo, pois o acusado foi condenado sem poder ao menos se justificar por ser um homem negro. Na mesma vibe desse livro, temos o conto Rita Hayworth e a redenção de Shawshank, onde o escritor vai debater mais um pouco sobre a institucionalização das prisões estadunidenses e sobre a pena de morte.

Em Novembro de 63, outro dos meus favoritos, King aborda o tema da viagem no tempo, partindo para o plano coletivo, mostrando que impedir o homicídio de John Kennedy não traria a paz mundial. Em O apanhador de sonhos, o autor a partir de um texto muito violento e escatológico, com muitas abordagens sobrenaturais e com foco em uma invasão alienígena, discute temas como a amizade, os vícios, os traumas, o luto, os problemas psicológicos tão comuns na década de 1980/ 1990, que não eram tratados de forma adequada e que prendiam o indivíduo em um não-lugar na sociedade e mais uma vez, o bullying, tema muito explorado pelo escritor. Já em um de seus romances mais aclamados pelo público, Misery, King aborda o tema do fanatismo, até onde uma pessoa é capaz de ir para ter domínio sobre o seu ídolo. Além disso, ele também retrata os limites da loucura, fazendo uma abordagem através do thriller psicológico da mente humana, que pode de repente nos pregar peças e nos levar a cometer atos extemos e violentos. Por fim, mas não menos importante, em Outsider, um romance policial com um toque de sobrenatural, o autor mostra mais uma vez que nem tudo o que parece é real. A partir de um caso aparentemente óbvio, ele mostra que existe a possibilidade daquilo que é evidente ser falso. Discute as relações familiares e de amizade, mostrando que quando algo de ruim acontece, nem todos aqueles que pensamos estar ao nosso lado realmente estarão ali. Romance fascinante e muito reflexivo em vários aspectos.

O que faz os livros de Stephen King conquistarem tantos leitores e se tornarem tão populares são os sentimentos que ele desperta no leitor com a sua escrita. De forma clara, simples, mas ao mesmo tempo prolixa, ele nos coloca não apenas na posição de observadores, mas também nos faz sentir o que aquele personagem está vivenciando, como ele se sente, como chegou onde chegou. É como se autor nos obrigasse a calçar as sandálias do personagem e caminhar com elas por um longo trecho, conseguindo assim compreendê-lo e principalmente não o julgar. Dessa forma, nos surpreendemos torcendo para que um presidiário consiga fugir, para que um milagre ocorra e impeça a cadeira elétrica de funcionar, para que um rato de esgoto sobreviva, para que a vingança de Carrie seja bem-sucedida. Também nos angustiamos com o desespero da esposa de Terry Maitland quando ninguém acredita na inocência de seu marido, caminhamos com todos os sobreviventes de A dança da morte e torcemos para que fiquem bem, até mesmo quando a Nadine e o Herold estão nos provocando os sentimentos mais sórdidos possíveis. Aliás, todos falam sobre a maldade de Randall Flagg nesse livro, mas na verdade, o mal estava dentro do Herold o tempo todo e eu o considero um dos maiores vilões da literatura.

O autor também não nos poupa no sentido de matar os personagens aos quais nos apegamos e isso pode ser lido como uma metáfora da própria vida: as pessoas vão embora, morrem, saem da nossa vida em algum momento e por isso é importante que tenhamos consciência disso e saibamos lidar com as perdas constantes. Natalia Ginzburg em seu maravilhoso ensaio chamado As pequenas virtudes diz que “a vida raramente terá prêmios e punições: no mais das vezes os sacrifícios não têm nenhum prêmio, e frequentemente as más ações não são punidas, mas, ao contrário, lautamente recompensadas com sucesso e dinheiro”. Assim, o indivíduo precisa ter forte dentro de si o sentimento de bondade e de dignidade para não sucumbir diante das frustrações e saber escolher entre o bem e o mal, o certo e o errado. Muitos de nós temos o hábito de evitar leituras mais densas e de nos alienar dos acontecimentos do mundo e isso não nos traz a paz, apenas uma sensação de conforto. As desgraças e mazelas continuam a acontecer e quando elas nos acometem, na maior parte das vezes, não sabemos como lidar com elas. E essa inadequação do ser humano em lidar com o fracasso, com a angústia, com os vários nãos da vida, estão nas páginas dos romances de King o tempo todo.

Ler Stephen King não nos torna prontos para enfrentar a vida e nem nos dá respostas para as nossas questões. Mas, nos faz mais humanos, mais empáticos em relação aos problemas alheios. O autor consegue dar protagonismo àqueles que são esquecidos, que não têm voz e que nunca em um romance clichê ou em um texto super erudito teriam a posição de protagonizar a própria história, seriam apenas uma caricatura em meio à trama. Entretanto, nas páginas de King eles brilham e nos dão lições de vida, de resiliência, de tenacidade e de compaixão. A amizade e a luta pela justiça são os temas mais comuns em suas obras e é sempre muito gratificante finalizar um romance como Novembro de 63 e refletir sobre ele, comentar com as pessoas algo que é comum a todos nós, repensar as nossas escolhas e ver que estamos onde devemos estar e que a vida pode ser mais simples se agirmos com os outros do mesmo modo que gostaríamos que agissem conosco. Essa é a essência de ler Stephen King.

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