crítica

Sula – Toni Morrison

“(…) não foi o que eu quis dizer, mamãe. Eu sei que você dava de comer para a gente e tudo o mais. Estava falando de outra coisa. Tipo. Tipo. Brincar com a gente. Você alguma vez, sabe, brincou com a gente?

Brincar? Ninguém brincava em 1895. (…) O que eu ia fazer naquele quartinho com vocês, tendo só três beterrabas na vida? (…) A Pearl cagava verme e era para eu brincar de cirandinha? (…). Não tinha hora. Não tinha hora nenhuma. Nenhuma. Quando eu conseguia encerrar o dia vinha a noite. Com todos vocês tossindo e eu de olho pra tuberculose não pegar vocês e se vocês estavam dormindo sossegados eu pensava, Ó senhor, eles morreram e botava a mão em cima da boca de vocês para ver se o ar estava saindo como assim você pergunta se eu te amo menina eu fiquei viva por você que tal você enfiar isso na sua cabeça oca ou nisso aí que você tem entre uma orelha e outra, cadelinha”? (Pg.86/ 87)

Há muito tempo um trecho de uma obra literária não me causava tanto impacto como esse do romance Sula (TAG, 2021) da escritora Toni Morrison. A partir desse excerto, podemos refletir sobre diversos assuntos pungentes, principalmente na vida das pessoas negras, que ainda hoje enfrentam as consequências da escravidão e do racismo estrutural.

A história de Sula se desenvolve através de um romance de formação, levando o leitor a participar e conhecer a trajetória de uma moça que é marcada desde o nascimento a ser uma pária e viver isolada de sua comunidade. A protagonista carrega em um dos olhos uma marca de nascença, em formato de uma rosa, o que leva seus contemporâneos a crer que esta seria uma mácula, algo que a diferenciasse dos demais e a excluísse da comunidade do Fundão, local onde se passa a história.

Estamos nos anos de 1919 e Sula ainda é uma criança. Ela não tem amigos, sofre fortes críticas de seus colegas de escola devido às suas origens e à sua família que é constituída por mulheres. Sua avó Eva não tinha uma das pernas, era separada e criava sua família sozinha, alugando quartos para hóspedes e se virando como podia para garantir o sustento dos filhos. A mãe de Sula, Hannah, também era uma mulher solitária, mas que se aventurava com vários homens da vizinhança, tornando-se muito conhecida e mal falada por sua conduta sexual. A solidão de Sula é aplacada quando ela conhece Nell no colégio, uma garota também isolada das demais por causa de sua timidez e recato. As duas logo se identificam e se tornam amigas inseparáveis.

Como já foi dito antes, este é um romance de formação, portanto, a história termina no ano de 1965, com um desfecho para os personagens centrais da obra. Porém, ao longo da prosa, Morrison vai discutir assuntos importantes para a formação desses indivíduos como sociedade e como sujeitos agentes no mundo de que fazem parte. O primeiro ponto que ela vai desenvolver é sobre a exclusão das pessoas de sua comunidade, baseada em boatos e estigmas sociais.

Desde que o mundo é mundo, pessoas são excluídas por não seguirem determinados padrões que constituem uma sociedade. Um dos principais excludentes da época em que o romance se passa é a mulher separada ou a mãe solteira. Neste caso, é como se essa geração de mulheres estivesse marcada para a desgraça e significassem algum tipo de mau agouro. Era essa a forma como os habitantes da comunidade do Fundão viam a família de Sula. Para as crianças, acostumadas a ouvir os comentários maldosos de seus pais sobre essas pessoas, tornava-se óbvio que Sula não deveria frequentar suas casas ou fazer parte de seu grupo de amigos. E dessa forma, um mito se criou em torno da pessoa de Sula, transformando-a em pária.

A exclusão unida a falta de perspectivas de vida, que se soma à falta de recursos pecuniários, que se alia ao excesso de doenças transmissíveis e ao medo de contaminações transformam qualquer pessoa sã em uma pessoa cruel, má e que simplesmente não se importa com nada e nem ninguém. De tanto ser excluída e estigmatizada como perversa ou sem caráter, Sula se modifica ao longo do tempo, demonstrando não ter sentimentos pelas pessoas e até mesmo vestindo os rótulos que lhe são impostos pelos outros. Fazendo um paralelo com outro livro que estou lendo no momento, Blonde da escritora norte-americana Joyce Carol Oates, logo no começo desse romance, a autora diz através de sua protagonista “assim como Jesus Cristo, serei conhecida pela voz dos outros e não por minha própria voz”. Essa frase tem um peso muito grande na vida de pessoas que se transformam em párias porque quem as está marcando dessa forma, geralmente não compreende a complexidade e a responsabilidade que têm sobre a vida do outro e como essas descrições maldosas sobre outrem são corrosivas e destroem vidas promissoras.

No romance de Toni Morrison, Sula após terminar o colegial se muda para outras cidades do norte do país, faz uma graduação, mas ainda assim não consegue obter êxito profissional. Ela era apenas uma garota negra, norte-americana, nas vésperas da Segunda Guerra Mundial, buscando o seu lugar ao sol como tantas outras moças. O peso da negritude fala muito alto nessas circunstâncias, pois, as pessoas escravizadas e os seus descendentes não tiveram os mesmos privilégios e oportunidades que as outras e dessa forma, sair do lugar onde se encontram torna-se um desafio muito maior que seria para uma mulher branca: conseguir um emprego decente, que pague as contas e que ainda permita sonhar com um futuro digno. Após muitas tentativas frustradas, Sula retorna ao Fundão, 10 anos mais velha, 10 anos mais amargurada e 10 anos mais cruel.

Assim retornamos à citação do início da resenha. Muitos de nós cobramos dos nossos genitores um amor infinito e uma presença constante em nossas vidas. Porém, dificilmente paramos para pensar nas dificuldades que envolvem a vida de um adulto. Um adulto comum, como a maioria de nós, no Brasil de 2021, está preocupado com a inflação alta, com o aumento da conta de luz, com o aquecimento global, com as variantes da Covid-19 e com as contas a serem pagas no final do mês. Já um adulto como Eva, avó de Sula no livro de Toni Morrison, se preocupava com coisas que nem chegamos a imaginar. Uma delas é a fome e a outra são as epidemias, as doenças e a falta de acesso a todos os direitos básicos do cidadão. Portanto, como essa mãe vai brincar de cirandinha?

E, não precisamos ir longe para encontrarmos algumas Evas por aí, bem aqui no Brasil e um século mais velhas que a original. Outro dia, escutando uma conversa de uma mulher negra e pobre brasileira, honesta e preocupada com o futuro de seus filhos, ela disse “ontem bati em meu filho, depois fiquei com remorso. Mas, precisei fazer isso. Ele estava correndo na rua do bairro em meio aos traficantes armados. Não o quero por ali, com essas pessoas. Tenho medo de balas perdidas e de drogas em geral”. Essa conversa cotidiana de uma mãe brasileira nos abre as portas para um diálogo que nunca deveria ter fim: até quando vamos precisar bater em nossos filhos, deixar de brincar com eles para nos preocuparmos com assuntos que deveriam ser de ordem pública? Será que as condições de vida das pessoas pobres e afrodescendentes interferem em seu caráter e em suas ações como indivíduos? Até quando vamos viver o determinismo, que está tão démodé atualmente? Mas que ainda produz vítimas? Ficam aí as reflexões e a importância de ler Toni Morrison e se chocar com as suas palavras e com as suas denúncias que infelizmente se mantem atuais.

Todos os temas supracitados estão no romance Sula. As questões sociais, as dificuldades da vida, as relações de amizade, de sofrimento, de angústia, de dor, de racismo e de exclusão e principalmente o lugar da mulher na sociedade. Os estereótipos criados e o determinismo. A crueldade com que a sociedade trata as pessoas é a mesma desde os tempos da autora até os dias atuais. É triste pensar que ainda estamos muito distantes de um ideal de igualdade e fraternidade.

A autora explora ainda muitos mitos e crenças religiosas, que definem uma pessoa ou anunciam o seu destino inexorável. Essas crendices são tratadas com muitas simbologias, que podem não ser compreendidas por todos os leitores. Mas vale a pena pesquisar ou escutar o podcast da TAG sobre esse livro. Ajuda bastante na inferência desses signos que não são tão conhecidos por todos nós. Recomendo muito esse livro, assim como todos os outros da autora, que nunca nos decepciona.

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