crítica

Tempos difíceis – Charles Dickens

Imagine que vivemos em uma sociedade onde o pensamento crítico é considerado como algo errado, onde sonhar, brincar e criar são coisas proibidas, consideradas maléficas ao ser humano e que todas as decisões devem ser baseadas em fatos e em cima de um raciocínio lógico. Imagine também que as pessoas, principalmente os estudantes são apenas o seu número de matrícula, o seu famoso R.A. (registro de aluno), sendo totalmente despersonalizadas e robotizadas. A memorização dos fatos é imprescindível para viver nessa sociedade. E os trabalhadores são apenas “mãos” que produzem até a morte para enriquecer os poderosos e jamais obterem nenhum tipo de reconhecimento. Essa é parte da ambientação que o leitor encontra no livro Tempos Difíceis (Boitempo, 2014) do escritor britânico Charles Dickens, uma de suas obras mais aclamadas pela crítica.

O período histórico retratado pelo autor nessa obra é o pós Revolução Industrial, onde o capitalismo começava a tomar formas e o utilitarismo estava em voga junto a um pensamento racional com o objetivo de crescimento urbano e enriquecimento de uma parcela da população. As grandes cidades fervilhavam com tantas possibilidades novas de vida, com as mudanças ocorridas após a revolução e com as oportunidades de trabalho na indústria, que começava a ditar as regras do novo contrato social. Esse foi um tempo de muita esperança e de transformação para os britânicos, mas que custou um preço muito alto para a população trabalhadora e pobre dos grandes centros urbanos, gerando doenças, miséria e desigualdades sociais.

Munido de um narrador extremamente sarcástico, debochado e irônico, Charles Dickens critica de forma contundente as condições de vida das pessoas pobres e o autoritarismo das esferas de poder em conduzir a população a seu bel prazer, colocando-os em uma situação degradante e humilhante. O narrador é onisciente, em terceira pessoa e muito intruso. Porém, apesar de seus “pitacos” na prosa, ele retrata muito do sentimento do leitor ao longo do folhetim: revolta, raiva de alguns personagens, antipatia por outros e alguns de nossos desejos em resolver as situações ou mesmo proteger personagens indefesas ou ingênuas demais – são exemplos de suas intrusões no texto. Essas características desse narrador são importantes para nos trazer um certo “alívio cômico” em meio a tantos temas complexos e difíceis.

Uma das principais características da obra do Dickens são os personagens caricatos em número extenso e a cidade da ambientação ser quase uma protagonista em suas histórias. No caso de Tempos difíceis não é diferente. A obra é dividida em dois núcleos principais: o primeiro é a família Gradgrind, o pai, Sr. Gradgrind é o responsável pela escola, onde ensina os fatos aos estudantes, acreditando piamente no método em desenvolvimento. Ele é casado com a Sra. Gradgrind e tem três filhos: Tom, Louisa e Jane. Próximo à sua escola, há um circo itinerante e em sua trupe, está Sissy, uma garota diferente, sensível e meiga, que é abandonada pelo pai e por motivos diversos acaba sob tutela do Sr. Gradgrind. Sissy fará um contraponto com os filhos e a família em questão.

O segundo núcleo de personagens vive em uma cidade industrial próxima à capital, que está sob o controle do execrável Sr. Bounderby. Ele possui fábricas e tecelagens, um banco e vive se gabando de “ter-se feito sozinho”. Se diz vítima de maus-tratos na infância e de abandono. Para se posicionar de forma social perante as pessoas, ele se apoia em sua governanta, a Sra. Sparsit, mas na verdade está de olho em Louisa, que ainda é menor de idade. Em uma de suas fábricas, trabalha o Sr. Blackpool, um homem sofrido, casado com uma mulher alcóolatra e apaixonado por outra pessoa, Rachel, uma mulher bondosa, caridosa e muito honesta e justa. Através desses personagens, a história se desenvolve em sua maior parte, discutindo as questões sociais, com ênfase nas relações de trabalho, no utilitarismo e nas diferenças econômicas e sociais.

Uma das questões importantes colocadas por Dickens em seu enredo é o grande dilema protagonizado por Blackpool entre os direitos coletivos e individuais. Stephen Blackpool é um bom homem, honesto, trabalhador, mas que tem um interesse em particular, que é se divorciar. Entretanto, esse desejo se choca com os direitos coletivos e com os padrões sociais, éticos e morais da época. Assim, para conseguir o seu intuito, ele precisa romper com a sociedade e lutar uma batalha isolada dos colegas. Esse conflito é um dos motes da história e que traz além de reflexões ao leitor, também um dos desfechos do folhetim.

Outro ponto fundamental para a construção desse romance é a sua ambientação. O leitor consegue se sentir sufocado em meio a tanta poluição e tristeza relatadas por Dickens nesse livro. A cidade industrial de Cooktown é um quase um inferno na Terra. O narrador ao descrever o nascer do sol, coloca a linha de fumaça, fuligem e poluição no cenário, mostrando o quanto aqueles moradores sofriam a troco de nada. Eles trabalhavam muito, ganhavam pouco e não tinham perspectivas de vida. Morriam muito cedo devido às condições do lugar e na maioria dos casos, terminavam a vida sem nada, apenas com o básico para continuar produzindo. Por isso, pode-se dizer que a cidade de Cooktown é um personagem em Tempos difíceis.

Um dos temas mais capciosos desse romance é o contraponto entre a educação baseada nos fatos e a inteligência emocional. De um lado temos o Tom, que segue a educação do pai, sem questionar e termina por ser um homem ruim, perdido, que não sabe lidar com os próprios sentimentos e nem enfrentar as dificuldades da vida. Louisa, a princípio, questiona algumas coisas, mas depois é colocada de volta ao não-lugar, à inexistência do espírito. Por outro lado, após a morte da Sra. Gradgrind, Sissy, que foi educada de outra maneira, aproveitando o ócio criativo, vivenciando uma infância da mente e tendo a liberdade de desenvolver o senso crítico e analítico, praticamente educa Jane, a irmã mais nova do clã Gradgrind. Jane é uma garota totalmente diferente dos irmãos, sendo até mesmo mais feliz que os dois mais velhos. Portanto, fica a grande questão: o que é educação para você? Devemos focar nos fatos ou no desenvolvimento do pensamento crítico?

Existe nesse ponto um diálogo muito forte com os dias atuais que vivemos no país. A cada dia somos mais incentivados a produzir sem parar, a competir uns com os outros em relação a tudo. Nossas crianças, antes da pandemia de Covid-19, estavam sempre com suas agendas assoberbadas de atividades extras com a única função de competir e se dar bem no futuro. O grande problema dos excessos é a falta de fruição, de ócio criativo e de diversão, de infância da mente. Dessa forma, perdemos muito em criatividade, em saúde mental e nos transformamos muito cedo em máquinas produtivas, ansiosas e nocivas a nós mesmos e aos outros. Vivemos à base de remédios para dormir, para concentração, para repor a vitamina D, para acordar e para existir. Além disso, existe um enorme descaso das autoridades brasileiras em relação ao incentivo à cultura, à educação, ao esporte e à arte. Essas são as maiores formas de fruição existentes no mundo e não podemos deixa-las se perderem em troca do utilitarismo.

Dickens no final desse romance folhetinesco, escrito há mais de cem anos, nos coloca como corresponsáveis pelas mudanças e transformações sociais que queremos para o nosso país e para a nossa sociedade. E esse sentimento nunca foi tão pertinente como agora. Vivemos “tempos difíceis” e vemos o utilitarismo ganhando forma a cada dia. Precisamos agir para as mudanças acontecerem. E essas ações começam conosco, de dentro para fora. É imprescindível colocarmos em prática aquilo que acreditamos, de forma consciente e justa. Vivemos em uma sociedade democrática e precisamos mantê-la viva, com respeito mútuo, educação e incentivo à cultura e ao pensamento crítico. Pensar é um dom do ser humano e nunca podemos abrir mão disso. O pensamento analítico nos abre as portas do conhecimento e conhecimento é poder. Educação é poder. Essas são as nossas armas a favor dos nossos direitos individuais e civis.

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