literatura

Tetralogia Napolitana – Elena Ferrante

Talvez de todas as resenhas do site escritas até o momento, esta seja a mais complicada de fazer por alguns motivos: o primeiro é que esses são os livros mais populares dos quais falei por aqui e por isso muitas pessoas estão saturadas de ouvir falar sobre eles; outro motivo para encontrar uma certa dificuldade em falar da Tetralogia é a grandiosidade dessa obra o que me deixa um pouco sem palavras. Mas vamos tentar falar um pouco sobre esses quatro livros que me arrebataram, transformando-se em livros favoritos da vida, sobre os quais vira e mexe me pego pensando, lembrando e buscando algumas passagens para me ajudar nas agruras da vida.

Começando então pelo enredo, acompanhamos ao longo de quatro volumes a história das amigas Lila e Lenu. As duas são de Nápoles – cidade onde se desenrolará grande parte do enredo – são meninas pobres, simples, de famílias tradicionais, moram no mesmo bairro e estudam na mesma escola. O primeiro volume da série tem foco na infância das duas, onde vamos conhecer todos os personagens da obra que serão importantes para a história das amigas. Aparentemente parece uma premissa simples, porém, não se enganem: temos aqui uma mistura de romance histórico com romance de formação, escrito com maestria pela autora e, onde a cada volume a história cresce: ou seja, o segundo volume da série é melhor que o primeiro, o terceiro é superior ao segundo e o quarto, é uma obra-prima.

A história é narrada em primeira pessoa por Lenu, já idosa, com o objetivo de contar a história de Lila, que no momento desapareceu de casa, cortou seu rosto de todas as fotos, em uma tentativa desesperada de apagar a sua existência do mundo. Ao saber disso, Lenu resolve fazer aquilo que sabe: escrever a trajetória das duas e falar sobre a sua amizade. No primeiro volume, chamado A amiga genial, as meninas se aproximam na escola pelo fato de Lila ser extremamente sagaz, bastante inteligente e chamar a atenção de Lenu, que é uma criança metódica, regrada e que se esforça ao máximo para ter boas notas. A professora das meninas, Galiane, observa atentamente a argúcia de Lila e começa a incentivá-la a estudar e a explorar a sua facilidade em aprender.

Há o tempo todo na narrativa uma zonza cinzenta, um lugar desconfortável onde habita o ser humano, que pode ser compreendido através dos sentimentos ambíguos que as duas sentirão uma pela outra: a princípio, um misto de admiração e inveja. Neste ponto, a narrativa da autora é fundamental porque ela consegue passar tudo isso ao leitor sem se explicar, sem dizer em palavras literais o que os personagens sentem. Somente uma escritora exímia como Ferrante consegue esses efeitos de levar o leitor a vivenciar a sua história.

Essa ambivalência de sentimentos das duas começa desde o momento em que elas se aproximam na escola. Nesta mesma aula, onde toda a classe descobre que a filha do sapateiro do bairro aprendeu a fazer contas complexas de matemática praticamente sozinha, ela é assediada pelos colegas com pedradas após o final da aula, Lenu então se aproxima e a ajuda a se livrar daquela situação, selando aí uma forte amizade. As duas vão viver suas aventuras e desventuras de infância, observando a vida acontecer naquele bairro hostil de Nápoles, onde há uma máfia comandando tudo por ali, chefiada por um homem poderoso, que tem como adversária uma usurária, que tem os nomes de praticamente todos os moradores do bairro em seu caderninho vermelho. Assim, conhecemos as famílias que mandam naquele lugar: os Carracci e os Solara.

Em meio a tantos acontecimentos, que são colocados ali como pano de fundo para a história das meninas, outros personagens vão aparecendo e aos poucos o leitor se acostuma a eles. É importante salientar que nenhum desses personagens está no enredo à toa. Todos eles têm a sua função, são bem desenvolvidos e nenhum deles fica esquecido pelo meio do caminho. Ou seja, a obra não se perde. De todos os personagens que aparecem em A amiga genial, o que precisamos prestar atenção além das famílias Carracci e Solara, é Nino Sarratori, talvez o maior boy lixo da literatura contemporânea.

 Apesar das histórias dos personagens secundários servirem como um pano de fundo para a trama principal, há um forte contexto histórico sendo desenvolvido aqui. Além disso, esses personagens coadjuvantes protagonizam cenas memoráveis de violência contra a mulher, homicídios, machismo, preconceito, o poder da máfia sobre as pessoas, a miséria, a escassez de tudo e o determinismo: já existe um destino para as pessoas de Nápoles: alguns poucos poderão continuar seus estudos, enquanto a maioria vai servir aos Carracci e aos Solara como empregados, as mulheres vão se casar e cada um continuará no seu lugar.

Essa falta de perspectiva de mobilidade social faz com que possamos ler a Tetralogia Napolitana como um romance de formação. Para Bakhtin, no romance de formação, o protagonista consegue cruzar a linha entre a aristocracia e a burguesia, tornando-se algo que não era para ser. O indivíduo cresce junto com o mundo ao seu redor e aprende com ele. Essa é a essência principal do Bildungsroman. E claro, percebendo a Lenu no início do livro escrevendo a biografia da sua melhor amiga, é notório que ela subverteu o seu destino traçado e conseguiu ascender socialmente, cruzando essa linha da pobreza para a burguesia. Esses conceitos um tanto ultrapassados para o leitor contemporâneo são importantes para a compreensão da obra porque a autora vai discutir essas questões com bastante profundidade ao longo da série. Ao mesmo tempo em que o determinismo vai predominar para alguns personagens, para outros não. Entretanto, tudo tem um preço e ele será mostrado nessa trama complexa e muito próxima da realidade de qualquer um de nós.

Quando as meninas estão se aproximando do fim da infância e começam a sonhar com um futuro melhor, de estudos e fora de Nápoles, inspiradas pelo romance de Louisa May Alccott, Mulherzinhas, o pai de Lila, mesmo contra a orientação da professora Galiane, resolve que a filha deve deixar os estudos e trabalhar para ajudar a sustentar a casa. Dessa forma, Lila abandona momentaneamente o seu amor aos livros e passa a se dedicar à produção de sapatos. Muito esperta e dona de uma lábia poderosa, ela convence o irmão mais velho a confeccionar um sapato desenhado por ela e expor na vitrine. É importante lembrar que o ano aqui é final de 1950, onde a Itália estava passando por uma crise econômica e política com o fim da Era Mussolini. Dessa forma, poucas pessoas poderiam comprar esse tipo de calçado e essa “aventura” de Lila lhe custa alguns problemas em casa.

Por causa desse sapato, o destino de Lila é traçado: Stefano Carracci a pede em casamento, que é aceito pelo pai dela. Michelle Solara também demonstra interesse em casar-se com Lila, mas ela tem um certo receio em relação à essa família, considerando-a sabiamente mais perigosa que os Carracci. Assim, a infância de Lila termina com ela se casando com Stefano, deixando de ser uma garota pobre para se transformar em uma dama de Nápoles, rica e poderosa. Sua família também se beneficia com o casamento: o pai e o irmão se tornam sócios de Marcelo Solara e do marido de Lila em uma sapataria de luxo, na parte alta do bairro, que estava em expansão. Aqui já é possível perceber a ascensão social e econômica de algumas pessoas, através da máfia e da usura, o crescimento e o desenvolvimento do bairro, sendo dividido em parte alta e baixa e o progresso chegando na Itália. Há ainda um contexto político ganhando força na trama, que vai fazer as duas frentes principais: os simpatizantes do socialismo de esquerda contra os burgueses capitalistas de direita liberal. Essa luta política dará o tom dos volumes seguintes da obra, compondo um panorama geral da polarização política no país durante o século XX.

O segundo volume da obra, História do novo sobrenome, conta a história da juventude das amigas. Enquanto Lila enfrenta um casamento opressor e se perde de si mesma, Lenu se realiza nos estudos, concluindo o Ensino Médio, algo que para a época é uma conquista muito grande para uma mulher pobre. Um dos maiores conflitos entre as duas acontece nesse volume, pois, Lenu apesar de ter um namorado, sempre foi apaixonada por Nino Sarratore, que em um determinado momento, se envolve com Lila, gerando um mal-estar entre as duas. O final do segundo volume é bastante triste para Lila e para Lenu, significa o início de uma nova vida, de uma nova jornada. Ao ganhar uma bolsa de estudos, ela se muda para Pisa, onde além de fazer a sua graduação, conhece muitas pessoas influentes e consegue publicar o seu primeiro livro de ficção.

Nesta parte da trama, a autora promove uma discussão muito ampla e pertinente sobre o lugar da mulher na sociedade. Lenu é uma moça livre, simpatizante das teorias feministas e da liberdade sexual da mulher. Ela não se prende muito a relacionamentos e sua grande prioridade é estudar e ser independente, algo que não demora a acontecer. Em contraponto a esse comportamento progressista de Lenu, Lila se volta para as tradições e para a segurança da vida ordinária, dando voz ao determinismo e seguindo um caminho de reclusão e de autopunição por erros que ela julga imperdoáveis. Muitas vezes Lila condena as atitudes modernas da amiga e assim há um afastamento entre as duas. Porém, quando Lila mais precisa, ela sabe a quem recorrer.

Esse é um dos pontos altos da narrativa de Ferrante porque não existem nesse romance pessoas perfeitas, sem defeitos ou caricatas. Temos aqui personagens críveis, humanos e que se parecem conosco, que têm atitudes próximas às nossas e assim, mesmo as protagonistas não tendo o carisma que precisariam ter para sustentar um romance clichê, na Tetralogia isso funciona como o sustentáculo da obra realista: o leitor compreende as ações dos personagens de acordo com o enredo e com a contextualização de mundo ao qual elas pertencem. A questão do feminismo será tratada nos outros dois volumes também.

No terceiro livro, História de quem foge e de quem fica, acompanhamos a idade produtiva dos personagens. No início desse volume, Lila está trabalhando em uma fábrica de embutidos na periferia de Nápoles, onde há uma exploração do trabalho e várias outras questões sindicais que servirão como mote para uma discussão maior que a autora fará através de alguns personagens coadjuvantes que participarão ativamente desse entrevero. Na Itália, na segunda metade do século XX, houve muitas lutas trabalhistas e sindicais devido às más condições de trabalho e à falta de um salário decente que pagasse as contas do proletariado. Essa luta era também contra a máfia e a usura, que proporcionaram a riqueza de muitas pessoas relacionadas a esses grupos fascistas e que são representados na Tetralogia através desse episódio na vida de Lila.

Enquanto isso, Lenu colhe os frutos do seu trabalho literário, tornando-se uma pessoa muito independente, oferecendo aos pais uma melhoria em sua vida cotidiana, aprendendo a dirigir – algo bastante incomum para as mulheres de Nápoles naquele tempo. Ela se torna uma celebridade em sua cidade e pela primeira vez, as pessoas demonstram um certo orgulho e um pouco de apreço por ela, algo que Lila sempre teve, mas Lenu não. O estudo naquela época era visto como algo que afastava as pessoas umas das outras. Era bem comum que àqueles que não tiveram oportunidade de estudar vissem os vizinhos ou colegas que se formaram como esnobes e pessoas superiores a eles no mau sentido. Lenu até consegue vencer essas barreiras, porém, não tem intenção de continuar vivendo em Nápoles.

Para Lenu, ter nascido e crescido em Nápoles e ser pobre é uma questão. Esta não seria uma obra de Elena Ferrante se não houvesse um conflito entre mãe e filha, um dos temas mais abordados por ela em seus romances. No caso, o conflito é protagonizado por Lenu e sua mãe. Ela sente muita vergonha da genitora, por esta ser uma mulher submissa, malcuidada, mancar de uma perna e não ter modos para conviver com as pessoas de uma classe social mais alta. Lenu guarda muitos rancores em relação à sua família, principalmente em relação à sua mãe. Esses conflitos são bastante explorados pela autora no terceiro volume da Tetralogia, principalmente depois do casamento de Lenu e da chegada dos filhos.

Outro tema que é discutido no terceiro livro é o casamento. Lenu, até então uma mulher livre, independente e cheia de convicções, cede ao marido logo no primeiro minuto do casamento, quando ele não a autoriza a tomar pílulas anticoncepcionais – sim, na década de 1970, na Itália, não era permitido à mulher comprar e usar anticoncepcionais sem a autorização do marido. Dessa forma, mesmo desejando esperar um pouco para ser mãe e antes escrever um outro romance, ela cede e se transforma em uma simples esposa e mãe de família.

Esse é um episódio bastante triste porque há uma questão da dependência da mulher ao homem e não apenas isso: para publicar seus livros e ter acesso às editoras e aos agentes literários, ela dependia da sogra e da cunhada. Se indispor com essas pessoas não era uma opção e assim, ela vai cedendo cada vez mais até perder a inspiração para a escrita. Porém, Nino aparecerá outra vez na vida dela e transformará tudo ao seu redor. Neste caso, fica claro que muitas vezes as pessoas precisam de alguém que acredite nelas e que as incentive a tomar atitudes que dificilmente tomariam se não fossem arrebatadas por uma paixão ou por um abalo muito forte em suas convicções e em sua acomodação. As consequências dessas decisões serão abordadas no quarto livro.

O último volume da Tetralogia, História da menina perdida, terá o foco em Lila. Aqui o leitor fica sabendo o motivo do seu desaparecimento e as suas agruras. Com a ajuda de Lenu, ainda no terceiro livro, Lila volta para o bairro onde nasceu e cresceu, constitui outra família e consegue um emprego muito bom com processamento de dados. É muito interessante acompanhar a chegada da IBM na Itália e o início de uma nova profissão e da era tecnológica. Foi uma escolha muito acertada da autora colocar a Lila como uma das pioneiras em TI – tecnologia da informação – porque ela sempre teve essa característica visionária e isso pode ser uma grande virtude quando as coisas dão certo.

Há um tempo de calmaria na vida de Lila, onde ela está estável, ganhando dinheiro, trabalhando e vivendo a vida como deve ser. Porém, após se separar do marido, Lenu também volta para Nápoles a fim de se reconciliar com o seu passado. Anos de harmonia e de felicidade se passam, até que os desfechos dos personagens começam a acontecer. Neste período, na década de 1990, a máfia já está em decadência, assim, os poderosos do bairro já não têm mais tanta importância como antes. O progresso vai chegando aos poucos, o ambiente vai se transformando, a vida das pessoas vai se modernizando. Muitos conseguem ascender socialmente, enquanto outros decaem por vícios ou por escolhas ruins em suas vidas. A educação vai ganhando mais ênfase na cidade e no país. A polarização continua por um tempo, mas os movimentos sindicais e feministas ganham maior notoriedade e se fortalecem a cada dia. As pessoas passam a ter mais direitos e com isso ganham esperança.

É muito bonito ver a história acontecendo nos livros, tanto dos personagens quanto da Itália. O leitor acompanha aqui um panorama do país durante o século XX. Mas não pensem que essa história tem um final feliz. A maioria dos personagens terá o final que merecem e Lila, como já sabemos desde o primeiro capítulo do primeiro livro, quer se apagar do mundo. Ela tem um motivo muito forte, que claro, não vou contar aqui para não estragar a experiência de ninguém. Posso adiantar que há uma grande discussão nesse quarto livro sobre maternidade, culpa, perdão, responsabilidade e consequências sobre as nossas escolhas de vida. Ler a Tetralogia Napolitana é uma experiência inenarrável. E para aqueles que não têm paciência para ler os quatro livros, há uma adaptação disponível na HBO que é bastante fiel à obra original e que vale muito a pena conferir. Esperamos que Elena Ferrante nos brinde com novas histórias como essa, que é genial.

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