crítica

Tudo junto, separado – Fugas da pandemia – Thais Steimbach

A partir de um olhar aguçado e sensível sobre as vivências geradas pela pandemia de Covid-19, Thaís Steimbach desenvolveu uma antologia de pequenos ensaios que nos fazem refletir sobre os nossos sentimentos durante esse período sombrio de isolamento e solidão. Através de um uso muito apropriado da linguagem, a autora coloca o leitor dentro dos textos e durante a leitura é bem normal pensarmos “eu passei por isso”; “me identifico com esses sentimentos” ou “ela expressou bem o que eu penso”. Esse pequeno grande livro me fez sentir-me parte de um processo coletivo de mudança e de transformação. Me senti acolhida e abraçada pelos textos, permanecendo em mim uma certeza: estamos todos juntos no mesmo barco.

O primeiro texto que me chamou a atenção foi “Inocência”, onde a autora relata um momento vivenciado entre mãe e filho. De forma sensível, porém contundente, ela mostra que nossas crianças estão entendendo os acontecimentos ao seu redor e que não adianta tentarmos disfarçar os nossos medos e frustrações, porque eles são perceptivos e espertos e não deixam passar nada. O nosso sentimento de impotência diante de algo maior que nós é totalmente universal e está nesse relato tão belo e profundo.

Em “Minha voz tem valor”, batemos um papo com a ironia e que deleite é esse ensaio. Bem-humorado, crítico e reflexivo. Em um trecho, Steimbach nos mostra o quanto somos ridículos ao questionarmos, por exemplo, o entregador de comidas não estar fazendo o isolamento social:

(…). Eles reclamam ter questões profundas e exigem compreensão. Querem saber porque o entregador de comida não tem direito a ficar isolado. Nessas horas, uma mistura de desprezo e fúria me faz pedir pela ajuda de I, que assume o teclado e esbraveja que o entregador tem fome e, “olha só, veja você plantonista da hipocrisia, esse trabalhador informal não poderia pedir comida remotamente! Mesmo antes de sermos empurrados para nossos apartamentos, com nossos notebooks e internet rápida. Ao contrário de mim e de você, “hihihi”, ele não tinha tempo para atividades cuja motivação era provar para o mundo que você estava, “ah!”, aproveitando adoidado a vida” (Pg. 18/ 19)

Através desse fragmento, um milhão de coisas nos vêm à cabeça, principalmente as desigualdades sociais que foram agravadas largamente ao longo dos dois anos de pandemia e desgoverno que vivemos.

O texto “Tão bom quanto poderia ser”, fala sobre as recordações e a memória. Thaís destaca a nossa relação com os sapatos e com os pés, enfatizando a falta que sentimos de nos arrumar para trabalhar ou para sair. Essas trivialidades, às quais não damos valor quando as temos o tempo todo, se transformam em preciosidades quando as perdemos. E dessa forma aprendemos a ressignificar nossas memórias, mesmo aquelas mais distantes do presente.

“Quem ama cuida” reflete sobre as nossas relações familiares e ao fato de termos de aceitar que aqueles que amamos não vão estar para sempre ao nosso lado. O importante nesse caso é estar presente e reaprender a conviver. Assim, ligamos para os nossos pais e conversamos sobre o tempo, as notícias do jornal e outras bobagens. No final desse ensaio, a autora diz:

Disse a eles o quanto eu lamentava que estivessem falando deles como se, por terem a idade que tem, não fossem importantes. Eles me responderam falando dos sonhos, tão simples, ainda assim desejos, que ainda tinham por realizar.

Meu palpite é que ancestralidade tem a ver com aprender que escutar é uma troca das mais genuínas. (Pg.29)

A autora mostra em sua prosa potente como vamos perdendo o traquejo social e ainda como nos últimos tempos nossas conversas giram em torno do vírus, das vacinas, das descobertas científicas, do número de mortos vítimas da pandemia ou dos cuidados sanitários que devemos tomar. Aquelas conversas gostosas, longas e cheias de significado parecem ter terminado junto com o isolamento social. Em “Liquido também evapora”, Steimbach relata a experiência dos encontros virtuais de sexta-feira para conversar com as amigas e como a intimidade vai se perdendo ao longo do tempo e principalmente atrás de uma tela. É como se uma artificialidade se infiltrasse no encontro e tomasse conta da espontaneidade e da liberdade das participantes. Na verdade, temos muitas questões para resolver quando a vida voltar ao normal.

O ensaio “Olho por olho” narra a experiência de uma pessoa preocupada com o vírus, que se importa com a sua saúde e com a dos outros, indo ao supermercado. As sensações que a autora relata são muito reais e próximas do nosso cotidiano. O comportamento das pessoas diante dessa experiência sem precedentes é colocado no texto de forma brilhante. Fica muito claro que a escritora conseguiu abarcar as experiências do cotidiano pandêmico de pessoas diferentes, mas que vivem o mesmo sentimento. Os relatos desse livro servem para a posteridade e relatam um momento histórico que será contado no futuro através de muitas vozes.

As ilustrações foram um show à parte. Desenvolvidas por Carolina Frandsen, os desenhos resumem o tema a ser tratado no ensaio subsequente e ajudam o leitor a interpretar e inferir as reflexões e o assunto que a autora está trabalhando em cada texto. Foi uma união feliz entre forma e conteúdo, proporcionando ao leitor um livro para rir, chorar, se divertir, mas principalmente, pensar sobre ele e consequentemente, sobre nós mesmos como indivíduos.

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