literatura

Um olhar sobre o cotidiano

Imagine que você está caminhando pelas ruas de Ontário ou de Vancouver, com uma câmera nas mãos, em meio a tantas pessoas comuns e que a partir dessa experiência, escolhe ao acaso alguém para dar vida em forma de um conto. Essa é a essência da obra da escritora canadense Alice Munro – contar a história de pessoas que passariam despercebidas e que seriam eternas coadjuvantes nas narrativas dos outros. Ela não vai falar sobre heróis ou sobre vilões, vai falar sobre os sentimentos humanos e as emoções que são totalmente universais.

Os enredos de suas narrativas são psicológicos, desenvolvidos através de um recorte do dia a dia das pessoas. E o mais encantador de tudo isso é que ela demonstra um grande conhecimento da alma das mulheres. É fácil se identificar com os sentimentos colocados no texto devido à sua simplicidade e ao mesmo tempo sua intensidade e densidade. As histórias são ambientadas tanto nos grandes centros urbanos como também nas cidades pequenas, lembrando a sua cidade natal. A profundidade de suas obras é notável, não deixando nada a desejar para os grandes romances. Munro consegue fazer em um conto o que muitos romancistas não fazem em mais de duzentas páginas, que é desenvolver um enredo forte e visceral, considerando o destino e as escolhas que fazemos como ponto de partida para o rumo de uma vida.

Os personagens criados por Munro são os mais diversos e comuns possíveis – uma mulher olhando uma vitrine, uma dona de casa exemplar, uma vítima de violência doméstica, um lenhador, um médico de plantão no hospital, um rapaz perdido ao voltar da guerra, sofrendo com estresse pós-traumático, um homem enlutado, uma viúva tentando recomeçar a vida, um casal de idosos lidando com as adversidades da velhice, viajantes, jovens, crianças, mulheres divorciadas, mulheres buscando independência, relacionamentos complicados entre mães e filhas, trabalhadores em geral, uma pessoa qualquer no metrô ou uma senhora muito culta perdendo sua vida para o Alzheimer.

O ato de contar histórias é secular e o que torna essas histórias especiais é a sua essência, uma parte dela que vai ficar conosco mesmo depois de muito tempo. A primeira vez que li um conto da Munro, identifiquei nele algo que gosto demais: uma enorme subjetividade na maneira de narrar, permitindo assim várias releituras. Em um primeiro momento, enxergamos uma camada dos personagens, tempos depois, percebemos que existem outras tantas que ainda não foram percebidas. Lendo suas obras, passei a gostar mais desse tipo de narrativa psicológica porque ficou claro para mim o poder que elas possuem em me comover e me tocar como leitora.

Alice Munro nasceu em 1931, em Wingham, condado de Huron em Ontário. Ela viveu o período entre guerras, a Segunda Guerra Mundial e o pós-guerra. Esses aspectos estão muito presentes em seus textos, afinal, ela viu as pessoas voltando da guerra e tentando reconstruir suas vidas, viu e vivenciou a transformação do Canadá de um local inóspito, hostil, permeado de natureza selvagem em um país cosmopolita, moderno e cheio de oportunidades tanto para nativos quanto para os estrangeiros que chegaram para ajudar com sua força de trabalho.

Em seu livro Vida Querida (Cia das Letras, 2012), a autora escreveu quatro contos autobiográficos, onde contou um pouco sobre sua infância e juventude, as dificuldades enfrentadas por seus pais e por ela mesma na escola, sua relação com Sadie, uma moça que ajudava sua mãe a cuidar dos filhos e que tem um destino trágico (narrado com muita sensibilidade por Munro), os momentos de insônia compartilhados com o pai, que resolveu o assunto com um diálogo franco, marcando essa cumplicidade entre os dois e suas leituras à beira do fogão de lenha enquanto ajudava a mãe com o jantar.

Dentre os escritores citados por ela estão Lucy M. Montgomery, Louisa May Alccot, Charles Dickens, Dostoievski, Tolstói e Proust. Posteriormente, em uma entrevista para a The Paris Review, Munro reconheceu a influência de alguns escritores em seus textos, tais como Katherine Anne Porter, Flannery O’Connor, Carson McCullers, Eudora Welty e William Maxwell.

Aos 20 anos, Munro se casou com Michel Munro, com quem teve três filhas e montou uma livraria na cidade de Victoria. Permaneceram casados por 21 anos, passando parte da vida conjugal em Vancouver. Em 1968 a escritora lançou seu primeiro livro Dance of the Happy Shades (sem publicação no Brasil) e a partir daí seguiu uma trajetória de sucesso na literatura, recebendo vários prêmios e tendo seus livros traduzidos para mais de dez idiomas.

Em 2013, Munro recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, sendo a primeira escritora a receber essa premiação escrevendo apenas contos. Na ocasião, os jurados a compararam com o escritor russo Anton Tchekhov, por ser uma grande conhecedora da alma das pessoas. Essa observação é bastante sagaz. Quando tive o meu primeiro contato com a obra de Munro, no livro O amor de uma boa mulher (Cia das Letras, 1998), a sensação que tive foi a de estar fazendo uma viagem no tempo, reencontrando as amigas da minha mãe ou minhas tias, as vizinhas do primeiro prédio em que morei, a costureira, onde ia com minha mãe levar roupas para consertar…. Seria mais ou menos como se essas pessoas tão reais e tão anônimas estivessem renascendo no texto da autora.

O dom de Munro em retirar do meio da multidão pessoas comuns e criar histórias extraordinárias para elas, demonstra uma grande sensibilidade e um ótimo senso de observação. Ela permite a esses indivíduos a transposição de suas vidas diárias para as páginas de um livro, onde um momento pode se tornar decisivo em suas vidas. Quando penso nos textos de Munro, imagino que ela consegue refletir muito sobre aquelas decisões que podem mudar tudo partindo dessa observação do cotidiano. Das pessoas comuns vivendo o seu dia a dia e transformando suas vidas. É a sensibilidade de ver no outro um pouquinho de si mesmo e em si um pouquinho do outro.

Alice Munro escreveu catorze livros de contos. Dez deles foram publicados no Brasil, sendo três pela Cia das Letras e sete pela Editora Biblioteca Azul. Os outros quatro ainda não foram traduzidos para o português. Alguns contos de seu livro Ódio, amizade, namoro, amor, casamento (Biblioteca Azul, 2011) serviram de inspiração para os filmes Longe dela (indicado ao Oscar), Canaã e Amores inversos. Do livro Fugitiva (Biblioteca Azul, 2014), três contos foram responsáveis por Julieta, filme dirigido por Almodóvar. Munro vive atualmente em sua província natal, onde é escritora-residente na Universidade de Western Ontario. Ela guarda memórias muito bonitas de sua cidade e dos momentos vividos ali ao lado de sua família.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *