literatura

Um retrato do artista quando jovem – James Joyce

Ao abrir o livro e se deparar com os seguintes dizeres “Era uma vez muito feliz uma vacamuu que vinha descendo pela estrada e essa vacamuu que vinha descendo pela estrada encontrou um menininho bunitinho chamado baby tukoo”, (JOYCE, 2018, pág. 9) o leitor pode pensar que se trata de um engano, um erro de impressão ou qualquer coisa do gênero. Mas não é nada disso: esta é apenas a primeira de muitas transgressões que Joyce fará neste texto único e que serve ainda hoje como referência a muitos escritores contemporâneos.

Um retrato do artista quando jovem (Autêntica, 2018) é considerado pela crítica como um dos mais importantes, fascinantes e brilhantes romances do modernismo em língua inglesa, trazendo para o leitor questões inerentes ao ser humano e à sua formação, através do fluxo de consciência e dos conceitos em voga no final do século XIX. É como se Joyce transgredisse a ideia do romance de formação e o transformasse em um desenvolvimento pessoal e de autoconhecimento de um indivíduo.

O romance nasceu de algumas anotações do autor em seus diários e de um primeiro esboço de um texto ficcional chamado Stephen Herói, que não chegou a ser publicado, transformando-se em Um retrato e em alguns contos da antologia Dublinenses. A ideia de Joyce ao escrever esse romance é contar a trajetória de Stephen Dedalus, um garoto que inicia a narrativa ainda criança e chega à fase adulta, saindo da sua pátria por não aceitar as regras impostas por uma sociedade baseada em padrões e dogmas construídos pelo colonizador, que são fundamentalistas, repressores e ortodoxos em relação à religião. Para muitos críticos, esta é uma obra quase autobiográfica, pois encontramos muitas semelhanças entre o protagonista de Um retrato e seu autor.

As duas primeiras páginas do romance são muito importantes para a sua compreensão, pois, o final da história está aí:

Os Vances moravam no número sete. Eles tinham pais e mães diferentes. Eles eram o pai e a mãe de Eileen. Quando ficassem grandes ele ia casar com a Eileen. Ele se escondeu embaixo da mesa. A mãe disse:

– O Stephen vai se desculpar.

A Dante disse:

– Ah, se ele não se desculpar agora as águias vêm tirar os olhos dele fora.

Os olhos dele fora

Agora

Agora

Os olhos dele fora

Agora

Os olhos dele fora

Os olhos dele fora

Agora” (JOYCE, 2018, pág. 10)

Temos aqui uma ameaça velada de sua governanta Dante, sobre o pecado e a imposição da religião, algo que é muito importante para ela. Porém, o pequeno Stephen ironiza essa ameaça, fazendo um versinho com a metáfora que ela utiliza, que faz parte também da cultura irlandesa e da mitologia local.  Ele não se desculpa, rompe com os grilhões da religião imposta por Dante e se torna um artista, algo já evidenciado nessa transgressão do protagonista em criar versos a partir de uma bronca.

No final do século XIX, estavam em alta alguns pensadores, destacando-se Darwin, Marx e Freud. Todos eles têm uma grande influência na obra de Joyce. Principalmente a parte da psicanálise, onde Freud analisa o nosso comportamento animalesco, o desejo de continuidade da espécie, os pensamentos em sexo na maior parte do tempo, a raiva que guardamos dentro de nós e somos ensinados a não manifestá-la por questões sociais e de convivência aparecem em Um retrato com certa frequência.

Há também, no nome do protagonista uma forte referência mitológica a Dédalo: personagem de Atenas, arquiteto competente, que criou um labirinto para o Rei Minos prender o Minotauro, filho de sua mulher. Entretanto, Tseu entrou no labirinto e matou o Minotauro. Para guardar o segredo do labirinto, o Rei Minos prendeu Dédalo e Ícaro, seu filho dentro do próprio labirinto. Para fugirem, Dédalo criou asas para eles utilizando-se de penas e cera de abelha. Porém, Ícaro voou muito próximo do sol e assim, perdeu suas asas que derreteram junto ao calor extremo. Dar esse nome ao seu protagonista mostra que ele não vai aceitar limites, regras ou qualquer coisa que seja sem questionar.

Em uma passagem importante do Capítulo 1, Stephen apanha de um padre do colégio interno por estar sem os óculos e por este motivo não estar copiando as lições. Ele considera essa palmatória injusta e mesmo correndo todos os riscos, denuncia ao diretor do colégio essa humilhação. Em outro momento, em uma conversa com os colegas sobre poesia, ele defende Byron, um excomungado, como o maior poeta de língua inglesa que existiu até aquele momento. Seus colegas o lembram de que Byron não faz parte da sociedade de bem, que ele é uma pessoa desonrada. Ainda assim, Stephen mantém a sua postura e a sua opinião impopular.

No Capítulo 1, vamos acompanhar a infância de Dedalus. Sua família é apresentada, assim como o contexto em que vivem. O nacionalismo é um dos temas principais nessa primeira parte do romance e a linguagem é mais simples, lembrando a de uma criança mesmo. Para compreendermos melhor os temas tratados por Joyce, é importante conhecermos um pouco da história da Irlanda, principalmente no século XIX. Nos séculos anteriores, o país foi invadido por celtas, por bárbaros e posteriormente, caiu em domínio da Inglaterra, sendo um dos países que compõem o Reino Unido.

Neste período que acompanhamos no romance de Joyce, a Irlanda vivia uma crise muito intensa. Em 1845 houve um evento histórico que ficou conhecido como A grande fome. Trata-se de uma contaminação das plantações de batatas, alimento base das refeições da população irlandesa, causando fome, doenças, morte e um forte êxodo. Esse acontecimento provocou a primeira crise séria no país, efetivando a independência religiosa, sendo que os irlandeses são em sua maioria católicos, enquanto que a religião protestante é a principal no Reino Unido. Esse fator é muito importante porque levantou as questões da identidade irlandesa, um questionamento que gerou uma revolta das massas que pediam a independência da Irlanda. Seu maior representante foi Charles Stewart Parnell, que lutava pela Irlanda no parlamento Inglês, defendendo a independência do país. Ele foi desqualificado por ter uma amante, no ano de 1890, quando esse comportamento era totalmente abominável em um país puritano e ortodoxo. Após ser rechaçado pelos padres, faleceu dois anos depois.

Não demorou muito para que uma revolta poderosa se armasse novamente, movimento que ficou conhecido como Levante de Páscoa, que ocorreu durante a semana santa de 1916. Seus membros criaram uma organização chamada Liga Gaélica, que tinha como objetivo a manutenção do gaélico como língua padrão da Irlanda e valorizava a produção artística do país, além das tradições culturais que lhes foram usurpadas pelos colonizadores e que não os representava mais. Nascia aí o nacionalismo irlandês.

No romance, o Sr. Dedalus, pai de Stephen, era a favor de Parnell e sua governanta Dante, contra. Há uma referência a essa discussão, envolvendo a religião. Algo que remete muito ao momento político atual do Brasil, polarizado entre direita e esquerda. Stephen era criança nesta ocasião e a discussão fica gravada em sua memória:

Ah, ele se lembrará de tudo isso quando crescer, disse Dante, exaltada desse linguajar contra Deus e a religião e os padres que ele escutou em sua própria casa” (JOYCE, 2018, pág. 33)

 Assim como o pai do escritor, o Sr. Dedalus perdeu o emprego e a família teve de se mudar por diversas vezes ao longo da narrativa por causa da queda de Parnell, evento que marca o início do romance. A discussão em relação à posição da Igreja devido à amante de Parnell é o cerne da discussão na casa de Stephen, na primeira vez em que se senta na mesa com os adultos:

“- Não é verdade que os bispos da Irlanda nos traíram na época da Cronwallis jurando lealdade? Não é verdade que os bispos e padres venderam as aspirações de seu país em 1829 em troca da emancipação católica? Não é verdade que eles condenaram o movimento feniano do púlpito e também no confessionário? Não é verdade que desonraram as cinzas de Terence Bellew MacManus? (…) Nada de Deus para a Irlanda! Gritou. Tivemos Deus demais na Irlanda! Fora com Deus! ” (JOYCE, 2018, pág. 38)

Em outra passagem emblemática, Stephen mostra que não considera o Reino Unido como pátria, ou como qualquer coisa. Em sua aula de geografia escreve em seu caderno:

Stephen Dedalus

Classe de Elementos

Conglowes Wood College

Sallins

Condado de Kildare

Irlanda

Europa

O mundo

O universo

(…)

Stephen Dedalus é o meu nome,

Irlanda é a minha nação.

Conglowes é onde moro

E o céu é minha aspiração” (JOYCE, 2018, pág. 17)

Esses versinhos que o protagonista cria ao longo do romance nos mostram muito de sua personalidade e de sua veia artística que está se desenvolvendo. Suas opiniões, que também estão se formando, são apresentadas através dessas colocações, que parecem inocentes, mas, têm um significado e um simbolismo muito interessantes e que fundamentarão a coesão e a verossimilhança do texto. Nada em Joyce é colocado no papel por acaso. Tudo tem um sentido lógico e proposital na composição de sua prosa.

Esse verso sobre quem é Stephen Dedalus, já nos mostra o seu futuro desligamento da religião e a sua desvinculação dos grupos, em busca de sua independência. Apesar de repudiar a “ideia” de Irlanda, o nacionalismo extremista e a religião, há também um desejo de viver em sua nação, em seu país de origem, porém, livre do Reino Unido, como um país europeu, com suas próprias idiossincrasias e cultura original, cultura esta que se perdeu há séculos após tantas invasões e tanto domínio sobre os povos originários. Há muitas referências ao longo do romance sobre a censura, algo que o autor viveria no futuro ao escrever a sua obra-prima, Ulysses.

Ao longo da prosa, assim como faz Guimarães Rosa em seu Grande sertão: veredas, Joyce mostra um desejo de afastar a linguagem da Irlanda da língua do colonizador. Esta é uma das principais características do movimento modernista: a transgressão da linguagem, a busca por identidade, a fuga do colonizador. Assim, Joyce questiona sempre quem são os povos originários da Irlanda? Para o autor, a cultura, a linguagem e a arte da Irlanda foram construídas pelo colonizador e não representam o país em sua essência.

Para que possamos entender essas questões de forma tão visceral e complexa, assim como são as grandes epifanias e as mudanças de paradigmas, Joyce utiliza-se das técnicas do fluxo de consciência, que nos permite o acesso à mente do narrador do texto ou do protagonista, saltando de um pensamento ao outro, em uma tentativa de copiar o trabalho da nossa mente.  Para que funcione bem, essa técnica precisa ser trabalhada de forma orgânica e bem executada, motivando o leitor a seguir com a leitura, sendo que essa não é uma tarefa fácil e muito menos simples. Esta foi a motivação de Joyce para o seu uso no romance: fazer o leitor entrar na cabeça de Dedalus e acompanhar o seu processo de autoconhecimento.

Dessa forma, no Capítulo 2, o autor aborda principalmente a questão da sexualidade reprimida e os pensamentos que Stephen tem sobre o assunto e que não consegue evitar. Acreditando ser o sexo um grande pecado e algo muito sujo, pois, essa versão da sexualidade foi construída em sua mente por sua governanta e pelos padres do colégio interno, Stephen passa por uma fase de muita culpa. Ao mesmo tempo em que sente os impulsos do corpo e o desejo por mulheres diversas, ele se pune e se culpa por não ser capaz de controlar esses pensamentos, que em sua concepção infantil são errados e pecaminosos.

Já no Capítulo 3, após ter a sua primeira experiência sexual, sua culpa aumenta motivando-o a participar de um retiro espiritual de sua escola. Lá, o padre faz discursos enfadonhos e tenebrosos sobre o inferno, deixando o jovem muito preocupado, até se confessar e se sentir ainda mais culpado. Por estar se sentindo mal por seu comportamento, ele acredita que as palavras do padre são ditas exclusivamente para ele. O medo da morte em pecado gera muita ansiedade no protagonista. Esse dogma é muito importante para o domínio da Igreja sobre seus fiéis.

No Capítulo 4, há uma tentativa de Stephen em levar uma vida de retidão. Mas, seus sentimentos de raiva, de questionamentos e os impulsos sexuais continuam presentes, mesmo agindo de forma correta e seguindo as regras católicas. Esse comportamento é observado pelo padre, que o convida a entrar para a vida religiosa. Ele percebe que precisa se desligar dessa experiência e ser ele mesmo, seguir a sua intuição:

Atravessou a ponte sobre as águas do Tolka e por um instante voltou friamente os olhos para a imagem de um azul desbotado da Santíssima Virgem que ficava como pássaro num mastro, num meio de ajuntamento de casebres com formato de pernil. Então, dobrando à esquerda, seguiu pela ruela que levava à sua casa. Dos quintais do terreno que se erguia acima do rio vinha até ele um leve cheiro de azedo como o de repolho estragado. Sorriu ao pensar que era essa desordem, o desgoverno e a confusão da casa do pai e a estagnação da vida vegetal, que iam conquistar a sua alma” (JOYCE, 2018, pág. 150/151)

Há uma simbologia muito forte neste trecho do romance, onde o atravessar a ponte tem um significado metafórico muito grande na transcendência do personagem, no sentido de deixar para trás os dogmas impostos pela sociedade e seguir a sua intuição, reconhecer na casa do pai – que é contra a soberania da Igreja sobre a Irlanda – o seu lugar no mundo e não ao lado dos padres, como celibatário.

Outra passagem da obra que representa uma mudança em Stephen através de metáforas, é o seu encontro com uma garota na praia. A água é um dos símbolos mais utilizados na literatura por ter muitos significados e aqui, especificamente, representa a possibilidade de se renovar, de lavar a alma das impurezas impostas pelo pecado, transformando essa “beleza pecaminosa” em arte. Após essa epifania, ele pensa:

A garganta doía com desejo de gritar alto, o grito de um falcão ou de uma águia nas alturas, de anunciar a todos os ventos com um grito lancinante a sua libertação. Era o chamado da vida à sua alma, não a voz chocha e rasa do mundo dos deveres e do desespero, não a voz inumana que o chamara para o pálido serviço do altar. Um instante de voo selvagem o libertara e o grito de triunfo que seus lábios seguravam rachava-lhe o cérebro” (JOYCE, 2018 pág.157)

Já se aproximando do final dessa jornada de autoconhecimento e descoberta do mundo, Stephen se sente transformado e tem a certeza de que fará o que precisa fazer e que não se deixará levar pelas ideias alheias, rompendo assim com as questões que o prendiam a uma vida sem sentido para ele.

Viver, errar, cair, triunfar, recriar a vida a partir da vida! Um anjo selvagem tinha aparecido para ele, o anjo da juventude e da beleza mortal, um enviado de formosas cortes da vida, para abrir de par em par à sua frente, num instante de êxtase, os portões de todas as vias de erro e de glória. Adiante e adiante e adiante e adiante! ” (JOYCE, 2018 pág.159/ 160)

Agora, tendo a certeza de ser um artista, Stephen, assim como Joyce parte para o mundo com a missão de registrar as epifanias e transformar as vivências humanas em arte. No Capítulo 5, o autor vai abordar mais sobre a epifania do protagonista, que pode ser traduzida como uma manifestação ou aparência marcante, referindo-se ao autoconhecimento do personagem. Transformar suas experiências pessoais em obras de arte torna-se a missão do artista, fechando assim o seu retrato: a experiência de um jovem que conseguiu visualizar sua epifania central representada pela garota na praia, que se torna uma fusão de todas as mulheres que passaram pela vida do artista nos quatro capítulos anteriores, deixando de representar o pecado e a escuridão e passando a representar a arte.

No final do romance, há trechos dos diários de Stephen, mostrando que ele seguiu a sua missão como artista e que as coisas do passado estão se conectando no presente e fazendo sentido para ele. Há muitas passagens nos primeiros capítulos, que são concluídas no último capítulo, provando que nada neste texto está ali por acaso. Tudo tem um sentido no final. Os diários são a prova da maturidade do artista após a epifania: ou seja, tudo valeu a pena, inclusive a sua decisão de deixar a Irlanda para seguir o seu caminho na arte. Era certo que tanto Stephen quanto Joyce não seriam aceitos em sua pátria sendo tão questionadores e subversivos.

Joyce não chega às respostas, mas questiona muito e tenta responder se o artista nasce artista ou se ele se faz, através do esforço e das tentativas e erro. No Capítulo 5, ele discute bastante a questão da arte pela arte e das tentativas de subverter a vida e a cultura de um povo ou até mesmo se transformar pessoalmente através da arte. Há um esforço do próprio autor, através da voz de Stephen em transformar a literatura irlandesa, dar a ela uma voz própria, buscar suas origens e até mesmo encontrar uma linguagem única da Irlanda. O artista não se identifica com os movimentos existentes e por isso procura atingir uma nova forma de arte.

A linguagem no final do romance muda, como se representasse a evolução do jovem, o crescimento de uma pessoa. Talvez inspirado nos romances de formação do século XIX, Joyce cria uma nova forma de fazer o romance, acompanhando os pensamentos de uma criança que cresce e segue seu rumo na vida:

“- Olha só, Cranly, disse ele. Você me perguntou o que eu faria e o que eu não faria. Vou lhe dizer o que eu farei e o que eu não farei. Não servirei àquilo em que não acredito mais, quer isso se chame meu lar, minha pátria ou minha igreja: e tentarei me expressar por meio de um algum modo de vida ou arte tão livremente quanto possa e tão integralmente quanto possa, usando para minha defesa apenas as armas que me permito usar, silêncio, exílio e engenho” (JOYCE, 2018, pág. 229)

Mais um livraço do Modernismo em língua inglesa, que nos leva à reflexão sobre a nossa própria vida e sobre quem somos. Essa última citação mostra a essência do romance de Joyce e a sua coragem em trilhar o próprio destino, mesmo que só, abrindo mão da conformidade, da zona de conforto e das coisas que lhe foram dadas. É bonito acompanhar essa jornada pessoal, imersiva e tão visceral de um jovem beato em um artista único. Recomendo esse livro às pessoas que têm a mente aberta para o novo e que também têm paciência para ler e reler os trechos. Essa é uma leitura que precisa ser feita de forma atenta e imersiva, caso contrário, não deixará marcas no leitor e dificilmente será compreendida.

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