crítica

Uma vida pequena – Hanya Yanagihara

Uma vida pequena – Hanya Yanagihara

Finalista do Man Booker Prize e do National Book Award, Uma vida pequena (Record, 2016) da escritora norte-americana Hanya Yanagihara divide opiniões. Vamos acompanhar nestas mais de 700 páginas, um romance de formação sobre um grupo de quatro amigos que se conhecem na faculdade e seguem pela vida juntos, formando uma rede de amizade, de amor e esperança.

JB é um rapaz afro-americano que nasceu em um lar estruturado no Brooklyn. Mesmo com a ausência de um pai, sua mãe e sua avó o educaram bem e construíram para ele uma família. A partir do momento em que sua mãe se tornou professora universitária, JB passou a ter uma vida bastante confortável, com vários privilégios. Apesar de ter suas questões relacionadas à raça e à sexualidade, JB tem uma vida comum, com problemas inerentes ao ser humano, tais como conseguir um bom emprego, ter sucesso profissional, encontrar uma pessoa para compartilhar a vida, ser independente economicamente e consequentemente, feliz. Dessa forma, ele criou para si uma régua do mundo a partir de suas vivências, julgando as outras pessoas desse lugar de bonança.

Malcom vem de uma típica família estadunidense, fruto do sonho americano: seu pai seguiu as regras, fez tudo certo e alcançou o seu lugar ao sol. Filho de um juiz e uma dona de casa, os problemas de Malcom durante a juventude se concentram no desejo de agradar ao pai, que o está pressionando para seguir os seus passos. No entanto, o rapaz quer mesmo é ser arquiteto. Desde criança ele sonha com a transformação dos espaços, com a intervenção bem-feita nos ambientes, trazendo para eles um pouco de luz e enfatizando sua beleza e seus pontos fortes. Porém, seu pai, um homem muito apegado às tradições não entende esses devaneios do filho, demonstrando sempre uma grande preferência pela irmã, Flora, que segue as escolhas de sua família, de forma consciente ou inconsciente, deixando os pais orgulhosos.

Malcom é um homem observador, sensível e muito amoroso. Mas, como todos nós, se sente inseguro e tem dúvidas sobre o caminho que vai seguir. Principalmente com a falta de apoio de sua família, ele oscila bastante entre o sonho e a realidade e para onde cada um deles o levará. Esse personagem tem uma trajetória muito bonita e seu amor e respeito pelos espaços, sejam eles quais forem, é muito inspirador e nos faz refletir sobre como vivemos e enxergamos os espaços à nossa volta.

Willem, um dos protagonistas mais cativantes da literatura contemporânea, veio de uma família pobre do interior dos Estados Unidos para estudar em Nova York. Ele é ator de teatro e trabalha como garçom, recepcionista ou vendedor para se sustentar na cidade e ter a chance de realizar o seu sonho: atuar em grandes produções cinematográficas. Willem tem sede de viver. Ele se deslumbra com o mundo, com os lugares bonitos, com as coisas mais simples da vida: um pôr do sol, o canto dos pássaros, a natureza, o cotidiano, um café ou um restaurante querido em Chinatown. Mas também é um grande apreciador das artes, da pintura, da literatura, da música e da arquitetura.

Willem é um personagem que sabe viver e desfrutar da vida com responsabilidade. Sua vida não é perfeita. Além das dificuldades enfrentadas na infância devido à pobreza, durante a faculdade ele perdeu um irmão muito querido e essa perda o acompanha por muito tempo, trazendo muita dor e um sentimento de impotência, de não poder impedir que algo ruim aconteça às pessoas que ama. Willem é um bom amigo, um bom filho e uma boa pessoa, mas, seu melhor amigo é Jude, o nosso grande protagonista desse romance.

Jude é um rapaz extremamente inteligente e misterioso. Logo de cara, o leitor já sabe que ele tem problemas de mobilidade, precisando da ajuda de um andador e às vezes de uma cadeira de rodas, o que é justificado por um acidente sofrido na adolescência. Apesar desse entrevero, Jude é um homem bonito, diferente, atraente e que deixa as pessoas muito curiosas sobre o seu passado, o qual ele não abre para ninguém. Sua profissão é o direito, curso que faz na faculdade quando conhece os seus amigos da vida e que será um de seus esteios ao longo de sua jornada.

É a partir de Jude que Uma vida pequena começa a dividir opiniões. Na verdade, o livro praticamente inteiro gira em torno desse personagem e de sua luta pela sobrevivência. Ao longo da narrativa, vamos descobrindo o que aconteceu com Jude e que o deixou como ele é e consequentemente, suas reações a todos os horrores pelos quais passou. E por isso, algumas pessoas consideram esse romance exagerado, incômodo e até mesmo apelativo. Enquanto outras pessoas o veem como um livro favorito e reflexivo. Faço parte desse segundo grupo e vou pontuar algumas questões e chaves de reflexão que observei durante a leitura.

Mencionei lá no começo do texto a questão da régua do mundo a partir das nossas vivências. Acho isso muito importante porque eu duvido que a maioria dos leitores desse livro já passaram por situações iguais às vivenciadas pelo protagonista ou por algo ao menos parecido. Pelo menos espero que não. E observo que nós, seres humanos, temos uma dificuldade muito grande em lidar com questões aparentemente pequenas perto das narradas nesse romance. Dessa forma, não podemos julgar as escolhas e a forma como Jude lida com os seus demônios. Creio que muitos de nós, no lugar dele, não teríamos passado da adolescência, quanto menos chegado à faculdade.

As escolhas de Yanagihara foram muito felizes sob o meu ponto de vista, no sentido de não transformar esse livro em um grande clichê. A partir das vivências de Jude desde o seu nascimento, existe uma enorme verossimilhança na sequência de acontecimentos posteriores, eles são possíveis em todos os sentidos. Já vi algumas pessoas dizendo que essas coisas não acontecem e que nenhum ser humano passa por tantas agruras assim, que há um exagero. Infelizmente, basta ligar a TV no canal a cabo Investigação Discovery e assistir uns dois episódios de qualquer coisa que estiver passando para mudar de opinião. Pesquisando um pouco sobre crimes reais, percebe-se que o destino das vítimas nem sempre é bom, na maioria dos casos, essas pessoas ficam marcadas pelo resto da vida e dificilmente conseguem sair do lugar e ter uma existência digna.

No livro, Yanagihara dá a Jude algo que falta às vítimas reais: esperança, inteligência, a possibilidade de estudar, dinheiro, poder econômico e coloca em sua vida pessoas boas, clementes, que o ajudam a atravessar a fase adulta, mesmo desconhecendo seu passado. O fato dele não colaborar como o leitor espera e não ser um poço de gratidão eterna a todos os que estão à sua volta é cruel. Não acho que uma pessoa que passe por metade do que ele passou consiga deletar de sua mente todos os horrores e seguir em frente como se nada tivesse acontecido apenas por amor ao próximo.

Isso me faz pensar que nós estamos sempre prontos para julgar, mas não para nos colocar no lugar do outro. Nem precisamos ir tão longe para compreender que se libertar de um trauma não é tão fácil quanto achamos. Vítimas de bullying todos os dias atentam contra sua própria vida ou contra a dos outros. Mesmo sendo amadas por seus pais ou por outros amigos e familiares, elas não conseguem sair desse limbo e se amarem, se perdoarem e seguirem adiante. Mesmo fazendo terapias, muitas pessoas simplesmente não conseguem. E pensem que o que aconteceu com Jude é no mínimo dez vezes pior que bullying.

Vi também em algumas resenhas comentários sobre a narrativa ser muito apelativa e descritiva, além de repetitiva. Por esse motivo, quase não li o livro. Depois mudei de ideia e fiquei feliz por isso. Yanagihara é bastante sutil nas suas descrições de violência e não se repete nesse sentido. A triste história de Jude é narrada apenas uma vez e quando outros personagens tomam conhecimento sobre ela, fica subentendido. Existem umas duas cenas gráficas de violência que são realmente chocantes. Porém, não tira o mérito da escrita da autora, que se mostrou uma pessoa muito erudita e que realizou uma pesquisa intensa para escrever esse romance.

Além da trajetória dos amigos, ela também faz muitas críticas ao modo de vida que adotamos: ter ou não filhos? Porque os queremos? Até que ponto somos egoístas e autocentrados? Qual o preço dessas escolhas em nossa vida? Como usar bem o dinheiro que ganhamos? Quanto vale uma vida? Yanagihara também demonstra um enorme conhecimento da cidade de Nova York, levando o leitor para vários bairros, mostrando lugares específicos com descrições muito bonitas e subjetivas de um lugar comum. Tudo isso através de uma escrita fluida, simples e fácil de entender, transportando o leitor para esse mundo que ela recriou na voz desses protagonistas tão diferentes, mas tão iguais. Complexos, mas parecidos com a gente. E que nos fazem pensar muito sobre a vida.

Fico feliz por Jude ter encontrado em sua vida pessoas como Willem, o amigo mais fiel de todos; Malcom, aquele que se antecipa às necessidades dos outros; JB que mesmo dentro de sua bolha ainda consegue ser uma pessoa amorosa e um bom amigo; Harold, pai, professor e mentor que todos nós deveríamos encontrar um dia na vida; Andy, médico e amigo que nos lembra quais os princípios da ética, da moral e da humanidade que guiam a medicina e todos os outros coadjuvantes que fizeram desse livro uma saga feliz e infeliz. Que nos mostraram através de suas ações e escolhas que há luz em meio às trevas, que para cada Irmão Luke, cada Dr. Trayllor, cada Caleb, existem muitos Willens, Malcons, JBs, Harolds e Andys. Nem todos nós temos direito aos anos felizes, mas Jude teve os seus. Talvez, seja uma questão de ponto de vista e nos basta enxergar os nossos anos felizes antes que eles passem e nós não os vivamos com a intensidade que eles merecem.

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