crítica

Vida querida – Alice Munro

Última antologia de contos publicada pela autora, quando esta anunciou que não escreveria mais, para a nossa tristeza, Vida Querida (Cia das Letras, 2013) reúne 10 contos espetaculares e mais 4 autobiográficos que são maravilhosos. Diferente de seus outros livros, ambientados no interior do Canadá, Vida Querida é em sua maior parte, narrada em Vancouver, em meio ao caos da cidade grande e da vida moderna.

É interessante notar que Munro viveu a transformação de seu país de um lugar ermo e hostil à uma nação cosmopolita e moderna e todas essas transformações são perceptíveis em seus textos. Assim como outros escritores, a autora tem um dom de captar os acontecimentos e os sentimentos coletivos das pessoas e transportá-los para o texto com maestria. Esse tipo de história geralmente me fascina muito porque é fácil perceber nos personagens um pouco de nós mesmos ou de nossas famílias.

Os contos dessa antologia são impactantes. Falam sobre morte, vida, lutas, trabalho, amor, maternidade e destino. São ambientados em diversos pontos da cidade, tais como hospitais, ruas, trens, edifícios residenciais e contam a história de pessoas comuns, que estão indo para o trabalho e recebem uma ligação avisando sobre um acidente com a mulher, outros que apenas observam o movimento da cidade, o crescimento dela e que desejam ser apenas mais um na multidão, mulheres que decidem deixar seus maridos por algum motivo que parece banal, mas não é.

Munro também vai abordar a guerra, não teria jeito de não o fazer. O estresse pós-traumático é um tema recorrente em sua obra. Seja através dos veteranos de guerra ou de pessoas que perdem um ente querido ou sofrem um trauma em sua vida. A forma como ela aborda essas questões é o grande diferencial da escritora, pois a narrativa é natural e fluida, mas carregada de sentimentos comuns vivenciados por todo o tipo de gente. Ela não tem a pretensão de criar personagens memoráveis, justamente porque eles podem ser todos nós ao mesmo tempo em um momento específico de nossas vidas.

A complexidade dos contos da autora provém das alusões que ela faz aos acontecimentos e de tudo o que ela deixa subentendido em suas histórias. O leitor está sempre em dúvida quanto à sua compreensão dos contos. As narrativas parecem simples, mas são muito bem construídas e complexas demais, abordando temas polêmicos e sentimentos universais que mexem com o leitor. Existem reflexões muito profundas sobre o que sentimos e o que realmente fazemos, como decidimos viver e o que é importante para cada um de nós.

As mulheres são protagonistas destes contos e a autora aborda o desejo de dar vasão à sentimentos contidos, como nós mulheres abrimos mão dos nossos sonhos em prol da família e dos filhos e o preço que pagamos ao dizer não às tradições e normatizações impostas pela sociedade patriarcal. Seus contos não são felizes, também não são dramáticos ao extremo, mas são impactantes, incômodos e abordam pequenas violências cotidianas às quais as mulheres estão sempre expostas. Alice mostra como a vida é difícil para todas as pessoas, por diversos motivos, ao passo que ela pode ser boa e querida também.

Munro mostra em vários dos contos como os homens estão sempre em vantagem em relação às mulheres e que estas, parecem estar sempre pagando um preço muito alto por existir. Ao mesmo tempo em que a autora mostra as mudanças do mundo, através dos acontecimentos mundiais, ela ilumina as dores internas dos personagens, o que acontece dentro dos lares, as pequenas violências, os abusos, as opressões, as doenças mentais, as mortes na família, a escassez de recursos e os dramas de cada pessoa comum e que pode levar o leitor à identificação ou à empatia.

Um dos meus contos favoritos dessa antologia, “Orgulho”, conta a história de homem que depois de passar anos de sua vida cuidando de sua esposa doente no hospital, sem vida, sem sorrir, apenas ali, do trabalho para o hospital, do hospital para o trabalho, em uma devoção total àquela mulher, um dia, encontra uma amiga por lá e ela o explica que sua esposa já se foi, não está mais ali e que ele está livre para viver, porque a esposa não vai voltar. É forte e belo, triste, mas de uma solidariedade tão grande que está em falta no mundo contemporâneo e individualista. Seus personagens são assim, somem e depois voltam à nossa mente, de repente, sem aviso prévio. E suas histórias marcam a cada um de uma forma diferente.

Os textos autobiográficos são belíssimos. O leitor acompanha um pouco a relação da escritora com seus pais e com a babá que faleceu, gerando um certo trauma para a criança Alice, que não conseguia dormir à noite. Sua mãe tem um espaço especial nestes contos, onde ela narra os enfrentamentos vividos por ela durante o casamento. Os preconceitos, os julgamentos e o silêncio. Ainda assim, ela consegue transmitir a confusão de sentimentos, o misto de amor e ódio que sente por essa mulher.

Há também um pouco da sua trajetória de vida até o casamento, suas leituras, estudos, dificuldades e histórias sobre a casa onde viveu com os seus pais desde que nasceu. Observamos o movimento de ruptura criado pela escritora para sair de casa e iniciar uma nova vida, rompendo com os laços familiares e as amarras propostas por uma sociedade tacanha e cheia de preconceitos. Essa vivência de Munro aparece em vários de seus contos, como um preço a ser pago pelas mulheres que desejam viver de forma livre e diferente de seus pais. E assim são os seus personagens, pessoas comuns, vivendo vidas comuns em um pequeno espaço do cotidiano. E os contos, são recortes do dia a dia dessas pessoas.

Recomendo a todos o vídeo da Aline Aimee sobre esse livro, que foi ao ar ontem no canal Chave de Leitura no YouTube. Ela clareou muitos pontos sobre esse livro para mim, fazendo com que ele crescesse ainda mais.

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