Em 2014, a ensaísta e jornalista Rebecca Solnit cunhou o termo mansplaining a partir de uma experiência ridícula, mas muito recorrente, que viveu em uma festa, quando um homem tentou explicar para ela e um grupo de amigas um livro de autoria da própria Solnit. A princípio, essa situação se aproxima do burlesco, entretanto, quando a levamos para uma discussão maior, verifica-se que esse é o princípio de uma violência que se perpetua cada vez mais em nossa sociedade, levando ao óbito mais de 600 mulheres por ano no Brasil.
A violência e a misoginia não são novidades para nenhum de nós, porém, atualmente, falamos sobre o assunto. Novos termos apareceram para dar nome a essas agressões que sempre começam de forma verbal. Quando um homem tenta explicar para uma mulher o significado de alguma coisa ou ensinar para ela conhecimentos que, em sua concepção não seriam compreendidas por uma mulher sem a ajuda de um homem, ele a está agredindo de forma verbal e intelectual, duvidando de suas capacidades.
As mulheres enfrentam o machismo arraigado desde que nos entendemos por gente. A cientista Marie Curie enfrentou situações completamente desproporcionais a suas descobertas pelo simples fato de ser mulher. Se não tivesse encontrado em seu caminho o marido Pierre Curie, ela simplesmente não teria conseguido desenvolver suas pesquisas e certamente um homem levaria os créditos por suas descobertas. Aliás, isso quase aconteceu na ocasião em que o marido recebeu o Prêmio Nobel sozinho quando os dois haviam ganhado e merecido a premiação.
Outro forte exemplo de luta por igualdade foi a da filósofa Simone de Beauvoir, que ainda hoje é lembrada por sua vida pessoal complicada e pelo relacionamento com Sartre e não por toda a colaboração científica e intelectual que ela desenvolveu ao longo de sua existência, em parceria com o marido. Os louros recaem todos sobre Sartre, enquanto Simone ficou com a parte da “vulgaridade” e da “promiscuidade” de suas vidas. Ora, porque as pessoas não falam da vulgaridade, da promiscuidade e da libertinagem de Sartre? Claro que porque ele é homem. Ao homem tudo, à mulher, nada!
Virgínia Woolf, apesar de suas digressões que muitas vezes são levadas a sério demais, contribuiu de forma muito intensa para a liberdade de pensamento das mulheres. Talvez, esse seja o seu maior legado: a propriedade intelectual para as mulheres. Virgínia era uma pessoa de espírito livre, gostava de caminhar enquanto colocava suas ideias em ordem, em suas palavras “às vezes, pensar é uma atividade ao ar livre, e uma atividade física”. Mas, infelizmente, hoje em dia é perigoso para uma mulher andar sozinha pelas ruas de todas as cidades do mundo. Solnit em seu livro Os homens explicam tudo para mim (Cultrix, 2017), cita muitos exemplos de mulheres em todos os continentes que alegam não poder andar pelas ruas depois do crepúsculo. Isso porque sentem um enorme pavor da violência sexual, de estupros e de homicídios. Não é um medo de assaltos ou latrocínios, mas medo de ser estupradas mesmo. Este é um dado preocupante e pior, muito pouco tem sido feito em relação a essa falta de liberdade das mulheres.
Solnit ainda cita muitos feminicídios ocorridos nos Estados Unidos e que chocaram a população. Esses crimes começam com a violência verbal, passam pela violência física, principalmente a doméstica e terminam em mortes. No Brasil, temos casos emblemáticos, como o de Ângela Diniz, uma socialite de Belo Horizonte, assassinada pelo namorado Doca Street em 1976. Este homem faleceu ano passado e aproveitando o ensejo, por seu nome estar de novo na mídia, um grupo de jornalistas fez um documentário em forma de podcast, chamado Praia dos Ossos, onde contam toda a história desse crime, levantando diversas questões incômodas e deixando muito claro como o júri foi levado a inocentar Doca e a colocar a vítima em julgamento, sendo esta responsabilizada por sua morte. A base da defesa desse caso era a “legítima defesa da honra”.
No século XXI, acreditamos que esse argumento não existe mais. Afinal, estamos em 2021 e ninguém mais levaria esse tipo de defesa a sério. Ledo engano. No ano passado, 2020, na cidade de Nova Era, estado de Minas Gerais, uma mulher foi assassinada pelo marido, na frente da cidade inteira, na saída de um culto, acusada de ter um caso com o pastor. Este cidadão foi levado a julgamento e inocentado por “legítima defesa da honra”. A promotoria recorreu ao Tribunal do Júri de Minas, que revogou a sentença e definiu uma pena ao acusado. A defesa recorreu ao STF e a Primeira Turma, por 3 votos a 2 manteve a sentença de Nova Era (oi???) mesmo na contramão das provas. Agora, este caso será analisado pelo plenário do Supremo.
Isso é muito sério, porque pode virar uma jurisprudência e dessa forma, vários casos de feminicídio serão absolvidos em “legítima defesa da honra”. A sensação de estarmos voltando ao passado é grande ou mesmo de nunca termos saído dele. Desde que me entendo por gente, vejo na TV e nos jornais casos assombrosos de violência contra a mulher. Lembro da morte estúpida da atriz Daniella Perez, por motivos torpes em 1992 e que atualmente, seus assassinos caminham livremente pelas ruas junto às pessoas de bem e ainda ganharam o “direito ao esquecimento”, onde não se pode mencionar seus nomes em veículos públicos e nem falar sobre o caso. Há 13 anos, uma jovem de 15 anos perdia a vida porque resolveu terminar com o namorado e este não aceitou o fim do relacionamento e tirou a vida de Eloá Cristina Pimentel. O assassino foi condenado a 39 anos de prisão e na próxima semana será colocado em liberdade por bom comportamento. Na noite de Natal de 2020, a juíza Viviane Vieira do Amaral Arronenzi foi assassinada pelo ex-marido com 16 facadas, na frente das três filhas. Então, mulheres continuam morrendo por não aceitarem uma vida mais ou menos, por terminarem relacionamentos ruins, por desejarem a liberdade ou por não ajudarem uma pessoa incompetente a se lançar profissionalmente.
Esses homens ainda tentam manchar a imagem das vítimas e esse é um argumento utilizado na maioria dos casos de estupro e morte de mulheres. Discursos como “ela provocou”, “a roupa dela era curta demais”, “ela era promíscua”, “ela queria morrer”, “ela queria a relação” são muito comuns quando estes são denunciados ou presos. Lamentavelmente por muito tempo essas falácias foram aceitas. Hoje não com tanta facilidade, mas, dependendo da situação, ainda ganham coro daqueles que dizem apoiar a “moral e os bons costumes”.
Além de todas as situações extremas citadas acima, ainda convivemos com os casos em que a mulher é vítima de agressões e ao denunciar, precisa provar as acusações e em muitos casos, o agressor é colocado em liberdade e volta para se vingar. Existem ainda as medidas cautelares que não são respeitadas e também não são fiscalizadas e que facilitam os homicídios e a perpetuação da violência. É fácil julgar e encontrar soluções para o problema, mas na verdade ele é mais arraigado que imaginamos. Muitas mulheres mantêm relacionamentos tóxicos e toleram a violência física e verbal por falta de recursos pecuniários para sobreviver. Quando há crianças em casa, fica ainda mais difícil sair de uma relação perigosa e os danos são sempre maiores. A violência contra a mulher não escolhe credo ou classe social, ela está presente nos lares dos quais menos desconfiamos.
Atualmente existem muitas formas de ajudar essas vítimas. Foram criadas ONGs que retiram essas pessoas dos lares abusivos, assim como há uma linha telefônica exclusiva para estes casos, foi criado o botão de pânico e as mulheres são atendidas na delegacia por outras mulheres e não por homens como antigamente. Apesar de todo o progresso para ajudar na erradicação desses crimes, ainda temos um longo caminho pela frente. É preciso conscientizar a população em relação aos vários tipos de violência existentes no mundo. Precisamos parar de ensinar nossos filhos a fazer piadinhas machistas, parar de apoiar e de repetir discursos vazios e cheios de ódio e principalmente, parar de julgar as mulheres através das roupas que vestem. É preciso respeitar para ser respeitado e aceitar que cada um tem o direito às suas liberdades individuais. Foi para isso que tantas pessoas pagaram com a vida para que hoje possamos nos expressar livremente e falar sobre temas tão complexos e tão necessários como este.
Referências:
SOLNIT, R. Os homens explicam tudo para mim. Editora Cultrix, São Paulo: 2017.
VIANA,B. THOMSON-DE VEAUX, F. SCARPIN, P. Rádio Novelo Podcast – Praia dos ossos, Ep. 1 a 22. Rio de Janeiro: 2020.
LOPRET, R. Podcast O assunto, Ep. Legítima defesa da honra: ameaça resiste. Rio de Janeiro: 2020.