Inspirada na vida de sua mãe, que nasceu durante a epidemia de Gripe Espanhola em 1919 e faleceu pouco antes do início da pandemia de Covid-19, Isabel Allende decidiu escrever um romance que contasse as vicissitudes de uma mulher centenária, que nasceu e morreu durante uma epidemia severa mundial. Narrado em primeira pessoa, em forma de epístola, com a intenção de retratar a sua história e também os acontecimentos mais marcantes do cenário sociopolítico da América Latina, Violeta (Bertrand Brasil, 2022) é uma longa missiva que essa senhora deixa para o seu neto Camilo a fim de documentar um século de muitas mudanças e transformações culturais, sociais, políticas, tecnológicas e econômicas.
O século XX foi um período histórico muito conturbado e que gerou muitas mudanças de paradigmas para a humanidade, além de ter uma enorme importância social e política devido às duas grandes guerras e à depressão norte-americana, fatores que impactaram fortemente a economia da América Latina, provocando a quebra de muitas famílias tradicionais e a perda de dinheiro de grandes empresários que investiam em ações da Bolsa de Valores. Isabel Allende consegue concatenar o nascimento dos personagens desse romance com grandes acontecimentos históricos ou com fenômenos naturais de forte magnitude e que impactaram de alguma forma a vida do indivíduo e do país. A primeira frase de Violeta já é um forte indicativo desse recurso:
“Vim ao mundo numa sexta-feira tempestuosa de 1920, ano da peste” (ALLENDE, 2022, pág. 13). De acordo com o pensamento dominante da época, o nascimento de uma mulher já era um indicativo de mau agouro, principalmente, se essa mulher nasce em uma sexta-feira, de chuva e no ano da peste. Esse é um indicativo de que o seu nascimento vai impactar tanto em sua família quanto no mundo, no sentido de uma mudança drástica e não muito auspiciosa para todos. Essas crendices são muito populares ainda hoje em algumas comunidades e no início do século XX, ditavam as regras de sucesso ou frustração para uma família.
Crescer como mulher em um ambiente patriarcal, em uma época difícil é um dos pontos altos do romance e um dos principais temas sociais que Allende aborda nesta obra. A infância da protagonista é marcada por um distanciamento dos irmãos e a um lugar de superproteção, onde ela tinha achaques constantes e suas vontades eram feitas pelas pessoas à sua volta. Até que seu pai, preocupado com a sua educação e com as regras sociais, manda buscar uma preceptora inglesa para dar aulas à Violeta e resolver de uma vez por toda essa questão dos modos da criança, que não conseguia lidar com perdas e frustrações. Neste ponto entra na trama Miss. Taylor, uma mulher irlandesa que tem uma história também marcada pelo patriarcado e por preconceitos sociais, que será preceptora de Violeta e que abrirá os olhos dessa garota para uma outra perspectiva da vida.
Miss. Taylor é considerada pela família Del Vale a pessoa que poderia educar. Essa idealização da preceptora inglesa está totalmente relacionada a status, ter essa profissional, com todo o estereótipo criado sobre ela, era considerado sinônimo de sucesso financeiro e social. Para a família é uma decepção descobrir que Miss. Taylor não é inglesa, que tem uma saúde frágil e que passou por situações muito ruins em sua vida pregressa e por isso emigrou para a América Latina em busca de um recomeço. A civilização guarda muitas violências, principalmente contra as mulheres e essas violências são tratadas através de um amplo cabedal de personagens femininas no romance Violeta.
Em meio às vicissitudes dos personagens, acontecem grandes momentos históricos que envolvem toda uma conjuntura familiar, social, política, cultural. Quando Violeta nasceu, no ano da peste, seu pai que era um homem muito bem informado, se preveniu e protegeu sua família do vírus, adotando medidas simples, como uso de máscaras, isolamento social e precauções que evitaram o alastramento da peste em sua casa. Um tempo depois, com a queda da bolsa de Nova York, ele teve um grande revés em suas ações, perdendo tudo o que tinha. Há uma ruptura aqui porque Violeta foi uma criança mimada, rica, que vivia na cidade. Seu pai, após perder seus bens e passar a ser assediado por credores, não soube como superar essa crise e entrou em uma espiral de autodestruição, consumindo ópio e cocaína como fontes de abstração e abdução da realidade.
Um dos personagens mais importantes da vida de Violeta é seu irmão José Antônio. Ao perceber a situação do pai, ele tenta de todas as formas organizar as coisas, mas não vê saída para uma crise tão grave. Em pouco tempo, conduz a família para o campo, a fim de eliminar despesas pesadas e recomeçar, já que a vida na capital não seria viável para eles. Há aqui uma ambiguidade no cenário onde o romance é ambientado, acentuando o caráter universal e atemporal da história de vários países latino-americanos e de muitas mulheres latino-americanas. As dificuldades pelas quais Violeta passará a partir dessa mudança para o campo, a qual ela chama de “desterro”, são comuns a muitas mulheres de sua geração, que poderiam ter uma vida privilegiada, mas por questões circunstanciais, econômicas, políticas e sociais, enfrentaram muitos dissabores e muitas privações.
O termo desterro, título dado à Segunda Parte do romance, que marca a passagem da infância para a adolescência e juventude da protagonista, tem a significação de ser expulso, desterrado. A família perde tudo por causa da crise econômica, assim vem o exílio em família, marcado por uma grande solidão. Todos os irmãos de Violeta ficam na cidade e se desprendem do restante da família. Só permanece José Antônio, que tem um forte sentimento por Miss. Taylor e não quer se afastar dela. O local que escolhem para recomeçar é Nahuel, uma comunidade afastada da capital, com um clima hostil, cercado por montanhas e natureza selvagem. Os habitantes locais são considerados párias sociais, pessoas malsucedidas para aquela sociedade. Isso porque levam uma vida simples, campesina e voltada para a cultura local. Há um esfacelamento da família nuclear da protagonista e a comunidade de Nahuel, composta por imigrantes, povos originários, camponeses e um grupo de professores voluntários, passará a ser sua grande família.
À medida em que Violeta vai chegando na idade adulta, as dificuldades das mulheres em ter reconhecimento, liberdade, mesmo no seio familiar, começam a se evidenciar. A protagonista mantém com sua mãe uma relação distanciada, reconhecendo mais em Miss. Taylor e sua companheira os ecos de seus sentimentos e frustrações. A maternidade é outro tema bastante abordado por Allende em toda a sua obra e que está presente de várias formas em Violeta:
“(…) as lembranças que tenho de minha mãe são menos precisas que as de outras pessoas com quem cresci, como minhas tias, Torito, Miss. Taylor e os Rivas. Sua condição de doente eterna é a causa de minha boa saúde; para não seguir seu exemplo, vivi ignorando os achaques que me acometeram. Assim aprendi que, em geral, eles se curam sozinhos se os trato com indiferença e dou tempo à natureza” (ALLENDE, 2022, pág. 80/81)
Essa relação paradoxal com a mãe, revela que as situações de sofrimento vividas por nossos ancestrais servem como uma forma de quebra de paradigmas para muitos de nós, enquanto para outros, pode ser uma fonte de inspiração e de espelho para seguir. As relações afetivas com as famílias estão relacionadas diretamente à nossa eterna busca de identidade em meio às mudanças sociais e políticas que envolvem os indivíduos em suas idiossincrasias em seu âmbito particular. O entrelaçamento entre a história íntima e subjetiva dos indivíduos e as condições sociais do ambiente em que estão inseridos é outra marca da obra de Allende e que também está presente em Violeta.
As conjunturas de vida individuais estão relacionadas às diferenças de classe, marcas da literatura latino-americana. Por isso, Allende utiliza como recurso narrativo a ideia de contar para alguém, como se fosse um testemunho, os acontecimentos históricos do século XX, a partir do olhar de uma mulher centenária, que não tem nenhum traço de heroísmo, mas que é comum, que teve seus acertos e falhas, e esteve ali, acompanhando todos os desdobramentos que modificaram a vida na América Latina e no mundo. Os nascimentos dos seus filhos e a chegada dos seus amores ou das pessoas mais importantes da sua vida são marcados pelos desastres naturais, como uma forma de atavismo, como se estivéssemos ligados à essas vicissitudes e dificuldades relacionados ao lugar.
Outra característica marcante das obras de Allende e que estão intrínsecas em Violeta, são os vestígios de dominação e relações sociais autoritárias da América Latina. É importante destacar que, do lugar onde a protagonista cresceu e viveu grande parte de sua vida, ela não tinha censo crítico para identificar e perceber as violências governamentais que aconteciam à sua volta. Diferente de muitas protagonistas da escritora às quais estamos familiarizados, Violeta é uma pessoa alheia à política. Ela tem características de personalidade fortes, tais como autonomia, praticidade, uma enorme facilidade em ir e vir, porém, ela não é uma protagonista engajada. As questões políticas são abordadas através do filho de Violeta, que é um grande ativista e que vai sofrer na pele as consequências de suas ações, trazendo para a mãe uma grande fonte de preocupações, desassossego e finalmente o fim de sua alienação.
Junto a essa conjuntura política, Allende também aborda as questões socioculturais e dos costumes latino-americanos. A convivência da protagonista com os povos originários e com os estrangeiros traz para a sua personalidade marcas profundas de um estilo de vida totalmente diferente dos que ela originariamente teria se a vida de seu pai não tivesse sofrido um grande revés decorrente dos acontecimentos mundiais que afetaram a América Latina no começo do século XX. Violeta também foge à regra de muitas personagens fortes de Allende no sentido de se relacionar com homens abusivos. Apesar da autora ter feito escolhas narrativas um tanto controversas, a questão da violência contra a mulher é uma marca da América Latina e que não poderia ser deixada de fora desse romance.
O primeiro marido de Violeta é um alemão com o qual ela não se sente feliz, muito em consequência do tipo de relacionamento que ela tinha com ele. Enquanto Violeta tinha um enorme dom para ganhar dinheiro, o marido não tinha essa capacidade. Assim, sentia-se humilhado por sua esposa ganhar mais que ele, descontando sua frustração em uma relação de poder abusivo, onde ele se colocava de forma superior a ela, forçando-a a se adequar às regras sociais de sua comunidade, que diferiam muito das suas vivências anteriores e daquilo que ela desejava para sua vida. Separar-se do marido foi algo quase impossível à protagonista. Quando se apaixonou por Júlian Bravo e resolveu morar com ele, enfrentou a condição de pária social por ser uma mulher separada e que vivia “amasiada” com um homem.
Júlian Bravo tem um papel crucial na vida de Violeta. É o pai de seus dois filhos, Juan Martim e Nieves. Desde o princípio da relação, Júlian demonstra traços de ser um homem abusivo, algo que se concretiza logo que a protagonista anuncia sua gravidez e que se estende por muitos anos. Sua relação com os filhos também é bastante controversa: não gosta de Juan Martim e adora de forma patológica a filha Nieves. Ao longo do enredo, Júlian se envolverá com o tráfico de drogas e com a CIA, afinal, grande parte do romance é ambientado durante a Guerra Fria, que tem um papel importantíssimo no desenvolvimento dos personagens e suas ações. Em contraponto aos crimes do pai, Juan Martim se mostra um grande ativista político, perseguido pelo regime autoritário, preso político e posteriormente, exilado na Noruega, como aconteceu com muitos latino-americanos nos anos de ditadura militar.
Já Nieves, como mais uma marca do atavismo na obra, é uma moça viciada em drogas, fechando o ciclo do tráfico na América Latina. É impressionante como a autora desenha todo o caminho da cocaína e dos opióides, que chegam ao consumidor através de pessoas como Júlian e que foram afetar diretamente a sua filha mais amada. Mesmo com todos os acontecimentos terríveis pelos quais eles passam, Júlian continua a mesma pessoa, não se arrepende de seus atos, só pensa em si mesmo e não se comove com o sofrimento alheio. Já Violeta tem um crescimento pessoal muito grande com todas as tragédias pelas quais é obrigada a passar. A partir do meio do romance, ela se questiona muito se foi uma boa mãe, se fez tudo o que poderia fazer, onde poderia ter melhorado e por que seus filhos são como são.
Essa é uma característica forte do gênero romance de formação, onde há um ponto de virada, geralmente na passagem da infância para a vida adulta do personagem. Em Violeta, temos esse plot quando a família dela que está relacionada ao contexto sociopolítico-econômico deste país específico, família da qual ela é desterrada, excluída e esse afastamento vai ditar a sua história. O outro ponto de virada acontece quando Nieves se muda para os Estados Unidos com o pai, em circunstâncias complexas para Violeta, que resolve continuar na América Latina, motivada por Juan Martim, que deseja que a mãe passe a observar mais o contexto à sua volta e a filha entra em uma espiral de autodestruição, assim como o avô, algumas décadas antes.
Todos esses acontecimentos, tanto os de foro íntimo, como os grandes acontecimentos históricos transformarão Violeta em uma pessoa melhor, nunca em uma heroína, mas em uma mulher mais experiente, mais reflexiva e sobretudo, humana. Este é um texto que flerta com vários subgêneros do romance – romance de formação, romance epistolar, romance histórico e memórias. Temos de tudo um pouco nesta narrativa cativante e fluida, que nos lembra de muitos fatos históricos dos quais não nos lembrávamos mais ou que estavam esquecidos em algum canto da nossa memória. Ler Isabel Allende é sempre muito prazeroso, tanto no quesito entretenimento, quanto em relação às reflexões que ela nos propõe em sua obra.
Nice post. I learn something new and challenging on blogs I stumbleupon every day. Its always interesting to read content from other writers and use something from other web sites.
Thanks for the comment. I also really enjoy discovering new sites and interesting texts to learn more and dialogue with people.